sexta-feira, 22 de maio de 2020

SANZABEL - Capítulo 02 - A morte de Risadinha e as dificuldades de Naú no serviço funerário


Não havia na cidade quem não gostasse, e muito, de Naú.
Alegre, animada,  estava sempre disposta a ajudar, fosse quem fosse.
Mãe de quatro filhos, viúva desde sempre, paraibana porreta, mulher direita, nunca tinha desmerecido o nome do finado Bahia.

Não rejeitava tarefa e não enjeitava trabalho. Fosse aniversário, quermesse, festa da cidade, batizado, crisma, para tudo que era festa, lá estava Naú pra ajudar.
                                                                                           
Mas sua preferência mesmo era velório. Não tinha um que Naú não fosse, ajudasse, coordenasse e depois comentasse, em casa e para parentes e amigos.

Veloriozinho pobre, chinfrim! Ou: que maravilha de velório! Você não imagina, uma festa, tinha gente de todo lado, veio gente de Loanda, Santa Cruz do Monte Castelo, Cidade Gaúcha, Paranavaí, Maringá, Londrina e até de Curitiba. A comida farta, cachaça e cerveja da boa. A viúva estava linda! Véu preto de renda portuguesa, vestida com um tubinho preto de cetim, muito apropriado. O defunto com um terno chique, sapato de couro alemão.... etc.

Isso quando o defunto tinha posses. E Naú era igualitária. Se num mesmo dia tinha um velório com muitas flores, coroas e fitas, e noutro lado da cidade um outro meio pobrinho, ela não tinha dúvida. Levava sem contestações, algumas coroas do morto rico para a casinha do morto, digamos, menos favorecido.

Assim que corria a notícia de um falecimento na cidade, Naú chegava na casa do defunto antes mesmo dele. Quando o corpo chegava do hospital ou do IML, já estava tudo organizado. Mesa no meio da sala para velar o morto, caixão escolhido e às vezes até já comprado, cadeiras alinhadas na parede para o povo sentar, etc.

Naquele tempo, em Santa Isabel não tinha casa funerária ou capela para velar o morto. O velório era em casa mesmo, e quem preparava o corpo era Naú. Dava banho, penteava, barbeava e trocava a roupa. Deixava o defunto quase sempre melhor que nas suas últimas horas. Tudo isso de graça, por solidariedade, por um certo prazer que, enfim, não vem ao caso.

Na cozinha, as vizinhas todas convocadas por Naú trabalhavam nos salgadinhos, docinhos e diversos tira-gostos para acompanhar a inevitável cachacinha de barrica, famosa na cidade e região.

Tinha “de um tudo”. Coxinha, linguiça picada, croquete de carne, de camarão, empadinha. E a cerveja era posta para gelar para acompanhar a sempre longa noite antes do enterro.

Não contente com organizar a festa, Naú era também a “mestre de cerimônia” do evento.
Na hora derradeira da despedida da família, Naú ordenava: “Atenção pessoal, vamos dar quatro passinhos pra trás que tá na hora da família se despedir."

Agora Donna Mariazinha (se esse fosse o nome da viúva), a senhora, os filhos e os netos podem se aproximar.

Vamos chorar o suficiente e rezar três Pai Nossos e cinco Ave Marias, porque num velório, a frase final da oração caia muito bem:

“Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora na hora de nossa morte. Amém”.

E depois disso, Naú comandava o fechamento do caixão, geralmente feito pelos filhos homens e o início da caminhada para o cemitério, “Nossa última morada”.


* * * * *

Mas acontece que no velório de Risadinha, as coisas sucederam de forma um pouco fora do habitual.

Risadinha era um mulato forte, cabra valente, 1,90 de altura, casado, três lindas filhas, e “fazedor de poço”, profissão muito conhecida na época quando não tinha água encanada e quase toda casa tinha poço.

Risadinha era o “poceiro” da cidade, muito conhecido e estimado por todos, cabra simpático, boa praça e cobiçado pelas mulheres pelo seu físico e simpatia.

O apelido vinha do seu sorriso permanente devido à uma deformação dentária que o deixava sempre com a arcada superior à mostra, numa risada constante e até um pouco desconcertante. Estava sempre de bom humor ou seria apenas pela condição física de sua boca?

Tanto faz, o que interessa é que Risadinha era conhecido como o bom humor em pessoa, e isso trazia amizade, amor, simpatia e também inveja e uma ponta de raiva nos seus detratores.

Risadinha incomodava um pouco os homes da cidade, porque, como se dizia: “Comia todo mundo”.

Casada, solteira, desquitada, viúva então nem se fala. Fazia o serviço geral. Passava o rodo.
As meninas da famosa boate de Santa Isabel, a “Periquita de Ouro” se gabavam de já ter conhecido o Risadinha.

Tem até uma estória de que Risadinha fez um poço no quintal da “Periquita de Ouro” em troca do compromisso de um serviço constante das “primas” por um ano inteiro. E não tinha quem se negasse a dar sua contribuição para pagar a dívida.

E elas não desmentiam. Dizem que adoravam ter que pagar tal tributo. Risadinha era também conhecido pelo seu dote desproporcional, que proporcionava intenso prazer nas senhôras, senhoras e senhorinhas da cidade.

Além de ótimo filho, marido e pai extremado, Risadinha costumava, para cobrar o serviço do poço na “Periquita”, encontrar-se com uma das meninas de lá toda quarta-feira num hotelzinho da cidade, depois de um lauto almoço na churrascaria da Dona Mafalda, para dar “umazinha”.

E foi numa dessas quartas-feiras que Risadinha capotou. Buxo cheio, infarto fulminante, no exato momento do “ápice do amor”. Morreu gozando!

Foi duro tirar ele de cima da quenga (já nas palavras da esposa e de Naú).

Duro por dois motivos, primeiro porque o cabra era grande e pesado demais, e segundo porque a “verga” continuava dura, tesa, solenemente hasteada como um mastro da bandeira nacional. E era grande...

Mas, como de costume, Naú conseguiu arrumar o corpo para o velório em casa, velório sério, vetusto, mas com tudo a que tinha direito o grande Risadinha. Muita cachaça, cerveja, salgadinho, sanduíche e até um churrasco patrocinado pelo seu grande amigo e dono do hotel das quartas-feiras, Nilto da Vandinha (que aliás, de tão famosa, merece ter sua história contada um dia nesses “recuerdos” de Santa Isabel).

Banhado, barbeado, penteado, a viúva levou seu melhor terno de linho branco para o velório.
Mas como vestir a calça do terno, se aquele mastro se recusava a baixar. Não tinha jeito, na vertical, 90 graus com o horizonte, rígido, e o pior, aumentado de tamanho, entumecido pelo tempo que ficou com o sangue ali disposto.

- Manda buscar um esparadrapo na farmácia do japonês que eu dou um jeito nisso, comandou Naú.

E deu, duas três tiras de esparadrapo abaixaram a petulância do Risadinha. Só que devido à intumescência, não deu para vestir a calça, e ela foi assim por cima mesmo, afinal, ninguém ia ver os lados soltos da calça embaixo de tanta flor.

Muitas flores, margaridas brancas e cravos vermelhos, que eram as preferidas do “de cujo”. Oferecidas por dezenas de anônimas admiradoras, para ódio de Marinalva a esposa.

E o velório transcorria na calma rotineira de todo velório.

Amigos e parentes nas cadeiras alinhadas na parede, o caixão em cima da mesa no meio da sala, um chorinho de vez em quando, uma nova visita que chega (meus pêsames Dona Noquinha – apelido da esposa) “santo homem, grande amigo, etc...”, aquele cheiro de flor, vela e formol, enfim um velório como outro qualquer.

Lá fora na varanda de trás, o churrasco corria solto, e cada vez mais os amigos chorosos lembravam das façanhas do Risadinha. Tristes, inconformados por um amigo daqueles, cheio de alegria e saúde, tão jovem... e tome cachaça, costela, linguiça e coraçãozinho de frango.

O calor do dia todo, aumentava na noite sem uma brisa. Tinha dado uma chuvinha que só aumentou a sensação de calor e umidade do ar. E todos suavam, às bicas. Camisas empapadas, calças arregaçadas, camisas abertas. Só mesmo com mais uma gelada.

E a noite corria, as crianças já tinha ido dormir, a viúva cochilava de vez em quando acompanhando as amigas de sempre. A modorra tomou conta.

Mas eis que o silêncio da noite morna foi rompido com um grito de Gutinha, sobrinha amorosa de dezesseis aninhos  que adorava o tio, e até já meio falada na cidade por causa disso:

- Meu Deus, o esparadrapo se soltou!!!

Com o calor, o suor, e a pressão, o esparadrapo colocado por Naú se soltou, e o “Mastro do Risadinha” voltou-se a empinar majestoso, todo poderoso, dominante na penumbra daquela sala. A calça leve, de linho branco voou e Risadinha expôs todo seu poder sobre os homens e mulheres da sofrida Santa Isabel do Ivaí.

Gutinha, ria, chorava e dava gritinhos histericos ao mesmo tempo. Ai meu Deus tio. Ai meu Deus tio...

Foi uma gritaria, um corre-corre, Naú já indignada defendia uma medida radical: “Me dá uma peixeira que eu corto o pau desse filha da puta”, dizia a paraibana no seu ódio de brios humilhados.

Mas nada, nada aconteceu.

Risadinha continuava no caixão, todo de linho branco, o mesmo sorriso nos lábios e o enorme pau duro empinado desafiando o falso moralismo e a hipocrisia isabelense

Todos da varanda entraram correndo, e Mané Preto, velho oficial de justiça, muito preto e muito querido na cidade, praticamente ditou o epitáfio de Risadinha:

“Negão filho da puta, viveu rindo e morreu gozando...”