domingo, 10 de março de 2024

CARO AMIGO, DESISTA.

 CARO AMIGO, DESISTA.


Contra a ignorância, a burrice, o terra-planismo, a anti-ciência, a anti-vacina, o armamentismo, o fascismo generalizado, a cegueira política, a ignorância histórica, o maniqueismo,  as seitas religiosas, o messianismo, a teocracia, o arrivismo social, o deslumbramento com a riqueza material, a negação da arte, etc e tal, não tem mais solução em indivíduos adultos já contaminados pelas crenças imbecilizadas generalizadas.

O Brasil sempre teve uma quase maioria de imbecis-ignorantes resultado de um péssimo ou nenhum ensino médio.

Passamos diretamente de uma sociedade escravista para uma economia feudal. 

A cultura e o conhecimento sempre apavoraram as classes dominantes.

Aqui ainda não chegou a revolução francesa, o Iluminismo, o renascentismo, nem mesmo a admiração pela ciência ou pelas artes dos gregos e romanos.

Tivemos alguns arroubos de inteligência como o semana de arte moderna, o cinema novo, a bossa nova, os incentivos jucelinistas, o tropicalismo, o crescimento da arte anti-ditadura, os governos Lula e Dilma, mas foi só.

Enquanto isso a massa ignara, o gado, os cães raivosos mantinham-se em suas hordas, matilhas, disfarçados, submersos, envergonhados do seu não saber, não entender.

Mas agora todos os trogloditas tiveram acesso às redes sociais onde se encontraram e começaram a orgulhar-se de sua ignomínia. 

Sentiram-se pertencentes à uma mesma tribo neandertalensis onde podem gritar suas imbecilidades impunemente.

Querido amigo, contra essa pandemia de ignorância só há uma vacina: 

Educação, cultura, arte, um bom ensino médio, um estado republicano, democrático, laico e justo.

Então meu caro amigo, desista.

Não espere solução desta e das próximas gerações, se é que sobreviverão ao desastre climático que eles negam.

Eles nem entenderam nada do que escrevi aqui.

Como dizia Nelson Rodrigues: “Os idiotas dominarão o mundo, não por terem razão, mas porque são muitos”

Do seu amigo Zelucio Gomes.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Minha Versão - Capítulo 44 - A viagem de volta, chegada no Galeão, a torcida do Flamengo e o reencontro com a liberdade

 A viagem de volta, chegada ao Galeão, a torcida do Flamengo, o reencontro com a liberdade. Um Chopp em Icaraí.


O voo era Santiago – Buenos Aires – Rio de Janeiro.

Não sei quanto tempo levou, mas para minha angústia foi uma eternidade.

 

Imaginava as várias formas possíveis de ser levado preso. Seria torturado? Temia o que fariam com a Marisol se soubessem que estava comigo, por isso resolvemos desembarcar separados.

 

Ao decolar da escala em Buenos Aires, estava tão nervoso que tomei o Librium que tinha me dado a vizinha socialista. 

 

Da casa de Pepin, finalmente consegui conversar por telefone com meus pais.

 

Avisei dia e hora da minha chegada, dos medos que tinha e das hipóteses de prisão.

 

Para tentar evitar, meu pai convocou vários amigos para me receberem no aeroporto, pelo menos para testemunharem que me viram vivo, que eu havia chegado, e assim não poderia ser “desaparecido” como costumava acontecer com os que voltavam do exílio. 

 

Entre eles o Danilo Mansur, grande amigo e advogado. Acho que foi dele a idéia de pedir ajuda ao conhecido advogado Augusto Sussekind, conhecido pela sua defesa de presos políticos, tendo conseguido com muita luta em quartéis, tribunais e delegacias, encontrar presos, evitar torturas e “desaparecimentos”.

 

Além dos amigos, advogados e familiares estava o inesquecível tio Juca, José de Oliveira, muito querido pela sua simpatia e educação em Vila Isabel, onde morava e eu havia nascido, na Bolsa de Valores onde trabalhava e principalmente na torcida do Flamengo. 

 

Era tão fanático e querido pelos torcedores, que embora frequentasse o Maracanã todos os domingos, nos dias que jogava o Flamengo deixava a cadeira “perpétua” que meu avô Adamastor de Oliveira lhe havia deixado de herança, para torcer na arquibancada, no meio da galera. 

 

Era da bolsa de valores como seu cliente e das cadeiras do Maracanã que tio Juca conhecia o coronel Macedo.

 

Graças à essa amizade, o tio Juca foi me buscar na pista do aeroporto (ainda não existiam os fingers) para me acompanhar durante a burocracia da chegada, enquanto toda a família aguardava do lado de fora, olhando pelo vidro da sala de desembarque, onde na época também era a restituição das bagagens.

 

Desembarcando, eu ainda relaxadão do Librium, segui com tio Juca que me perguntava:

 

— Conseguiu passaporte?

 

Disse que não e ele deu um sorriso amarelo para esconder a contrariedade. 

 

Havia duas filas na Polícia Federal, uma para brasileiros e outra para estrangeiros.

 

Marisol entrou na sua fila, com seus longos cabelos loiros, seu poncho e seu violão, enquanto eu, de terno, gravata e bigodinho aguardava, com o tio Juca, minha vez de mostrar os documentos no guichê da Polícia. Documentos que se reduziam à minha identidade e ao cartão de desembarque que se preenche no avião de voos internacionais antes de aterrisar.

 

A fila andando, e eu, Marisol, tio Juca e a família do outro lado do vidro cada vez mais nervosos. 

 

Não sei se era mesmo o procedimento padrão ou foram nossas caras tensas que nos denunciaram. Ao chegar na minha vez, o burocrata me pediu o passaporte:

 

— Passaporte.

— Não tenho, fui para o Chile por terra só com a identidade, mas agora com o que aconteceu lá, tive que voltar de avião.

— Profissão

— Estudante

 

Nesse ponto, o burocrata, de dentro de sua guarita de plástico começou a gritar:

 

— O quê? Estudante, vindo direto do Chile? Aí tem coisa, eu não autorizo o desembarque.

 

Mais uma vez, falei para mim mesmo: FUDEU!

 

Nisso, ouvindo os gritos, abre-se uma porta e sai da sala ao lado um senhor de terno preto com cara de militar. Sério, cara amarrada, caminhar firme. Vem direto para o nosso lado.

 

O burocrata parece que ficou mais apavorado, e gritava mais alto ainda:

 

— Não desembarco, é subversivo, não desembarco mesmo!

 

Parece que estava querendo chamar a atenção do senhor de terno preto, mostrar serviço, ou com medo de ser acusado de deixar entrar um estudante subversivo. Quem sabe?

 

O senhor de terno preto aproximou-se mais. Minhas pernas tremeram. Chegou perto e perguntou educadamente:

 

— O que está acontecendo aqui agente?

 

— Coronel, esse estudante está chegando do Chile, sem passaporte, sem outros documentos, é tudo muito suspeito.

 

A fila crescia com as pessoas que chegavam do avião, todos olhavam, a tensão subia.

 

Até que o homem de terno preto nos olhou e gritou:

 

— Juca, mermão! O que você tá fazendo aqui? 

 

E meu tio Juca, com seu lindo e cativante sorriso de sempre respondeu:

 

— Coronel Macedo! Que bom te ver rapaz. Há quanto tempo, não tem mais ido nos jogos do Flamengo, a turma está sentindo a sua falta!

 

—Pois é Juca, depois que assumi o comando do aeroporto, não tenho tido tempo para nada.

 

E tio Juca:

 

— Macedo, é que vim buscar meu sobrinho na pista, e esse cara aí tá querendo criar problema.

 

Coronel Macedo voltando-se para o agente do guichê.

 

— Desembarca o garoto aí Armandinho, porra!

 

— Ma…ma…mas onde eu carimbo coronel?

 

— Em qualquer lugar Armandinho, não enche o saco porra.

 

Armandinho nervoso, carimbou meu desembarque no formulário que eu havia preenchido no avião.

 

O Coronel Macedo com o braço nos ombros do meu tio Juca foi nos conduzindo para a porta de desembarque. Pela sua cara, seu sorriso matreiro, entendi que ele entendera tudo, mas não ia brigar com um amigo de torcida e seu corretor na bolsa de valores.

 

Enquanto eu abraçava cada um dos parentes e amigos, com os olhos cheios de lágrimas de alegria e de alívio, mas sem querer chamar muito a atenção, tio Juca à parte marcava um chopp com o coronel Macedo para o próximo domingo. Que ambos sabiam que nunca aconteceria. Coisas de carioca.

 

Foi assim, embora torcendo pelo Botafogo, que graças à torcida do Flamengo e a um coronel da Aeronáutica, desembarquei no aeroporto do Galeão em outubro de 1973 sem ser preso.

 

                                                               *** 

 

Demoraram algumas semanas para cair a ficha. Durante algum tempo ainda temia que a polícia se daria conta do erro e viria me buscar em casa.

 

Dormia com sobressaltos ouvindo carros e viaturas na rua. No fim de semana, jantando pela primeira vez num restaurante perto de casa, fiquei apavorado com os fogos de artifício lançados por torcedores depois do jogo. Pensei que fossem tiros, e pensei em fugir, me esconder.

 

Mas eu não tinha motivo para me preocupar. Meu pai, depois da ligação que fiz do Chile, conseguiu com o Sussekind os documentos de prescrição  do processo de Ibiúna. Eu estava livre para voltar à faculdade e trabalhar.

 

Aos poucos fui relaxando. Embora ainda estivéssemos sob a ditadura militar, já se falava em abertura, e eu, em comparação com a experiência vivida no Chile, tinha um sentimento de alegria e liberdade.

 

Até voltar à faculdade, em março de 1974, resolvi compensar o enorme estresse do golpe e da ditadura chilena.

 

Para curar esse trauma, nada melhor que as praias oceânicas de Niterói, como Itacoatiara, Itaipu, Piratininga, com muito sol, calor, e degustar um chopp gelado, bem tirado, em Icaraí, deslumbrado com a vista do Rio de Janeiro, do Pão de Açúcar, Enseada de Botafogo, Praias do Flamengo e a Baía de Guanabara. 

 

Minha querida Praia de Icaraí, minha principal referência de infância que, em alguns momentos, cheguei a achar que nunca mais veria…






 

 

 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Minha Versão - Capítulo 43 - A visita de Rosi & Rodrigo - o Pepín sabe de tudo - o plano de fuga

 A visita de Rosi & Rodrigo, o Pepin sabe de tudo - A fuga para embaixadas - Argentina – Panamá – Bélgica.

 

Para uma kombi em frente de casa.

Saltam Rodrigo e Rosi e entram assustados, olhando para os lados, para os cantos, para a rua e para o quintal.

 

Rodrigo:

 

— La cagaste huevón, el Pepin sabe de todo,

            Dice que la pollito no vive con amigas de la facultad,

            Peor, que vive con un hombre,

            Peor, que vive com un exiliado brasilero,

            Peor todavía, que vive com um guerrillero comunista terrorista.

            Dice que te vá a denunciar a la policía.

 

Meu primeiro pensamento foi: FUDEU, estou morto!

 

Pepin, como carinhosamente chamávamos o meu futuro sogro, havia voltado há alguns meses da Índia, onde fazia cursos para vir a ser um mestre de yoga.

 

Acontece que como todo médio empresário, industrial, apesar de yoga, odiava a esquerda, e na sua volta havia se alistado numa milícia de direita de defesa da sua quadra e bairro, andavam armados e eram treinados para impedir as invasões de residências pelos favelados, notícia “fake” com que a mídia assustava a classe média.

 

Além disso, eram incentivados a denunciar qualquer pessoa do bairro que tinha comportamento “suspeito” como usar barba, cabelo grande, ler constantemente, possuir muitos livros, ou exercer ou estudar ciências humanas, como história, sociologia, psicologia, antropologia, etc… 

 

Certamente me denunciaria, pois só agora vinha a saber que a história que a família, a começar pela esposa, lhe contava sobre a filha caçula era tudo mentira.

 

Enquanto estava estudando na Índia, as cartas lhe diziam que sua filhinha querida, a preferida, a caçula, la pollito, assim chamada por ter sido uma menininha doce e loirinha como um pintinho, tinha entrado para a Universidad de Chile e fora morar com umas amigas perto da faculdade.

 

Depois do golpe, mandou averiguar e descobriu tudo. Declarou em casa que havia se inteirado da verdade e que denunciaria o brasileiro que sequestrara sua filhinha, para que fosse preso e ela voltasse para casa.

 

Eu estava literalmente FUDIDO.

Não tinha saída. Ou convencia o Pepín de que eu era um cara legal, bem intencionado, etc, ou pulava o muro de uma embaixada, das poucas que ainda estavam aceitando refugiados e não devolviam os “puladores de muro” ao exército chileno.

 

Resolvi encarar as duas últimas saídas.

 

Através da Rosi, e com o apoio da minha futura sogrinha, a quem até hoje devo a vida, combinei de agendar uma conversa com o sogro para dois dias depois, antes que ele me denunciasse.

 

Na vizinhança, todos sabiam da minha condição e calculavam que mais dia menos dia viriam me buscar para o Estádio Nacional. Isso significava que uma vez saindo de casa, não teria como voltar. Minha missão então ficava mais difícil.

 

Tinha que convencer o sogro de que eu era um cara legal, que permitisse que sua filhinha querida viajasse comigo para o Brasil, e que me acoitasse em sua casa por uma semana, até o dia da viagem com passagem já comprada pela Varig. Pedi asilo e a mão de sua filha, ao mesmo tempo.

 

Usei o lado argentino/sentimental dele. Era filho de argentinos que emigraram para o Chile onde ele veio a nascer.

 

Como todo argentino, era um romântico, adorava um tango, uma milonga, uma história de amor, um bolero. E foi o que contei.

 

Passamos uma tensa mas agradável tarde juntos, no escritório da casa de Las Condes.

 

Meu plano era convencer meu sogro, até então meu desconhecido, a permitir que sua filha menor de idade casasse comigo, fosse comigo para o Brasil, que ele desse autorização para que ela tirasse passaporte, viajasse para o exterior sendo menor de idade, e o mais difícil de tudo, que eu ficasse morando em sua casa até a viagem e que nos levasse ao aeroporto, uma vez que só se passava nas barreiras militares com um salvo-conduto e em carro próprio.

 

Caso não conseguisse essa missão, que me parecia quase impossível, o plano B era pular o muro da embaixada da Argentina, Panamá ou Bélgica, que eu soube que ainda não devolviam os puladores de muro.

 

Mapeei as embaixadas, vesti o máximo de roupas possíveis, pois não poderia sair carregando mala, coloquei todo o dinheiro no bolso interno do meu casaco, junto com dois comprimidos de Librium doados pela vizinha socialista ao nos despedir. Além do calmante, de um grande abraço dela e do marido, me benzeu e desejou que tivéssemos sorte e fossemos felizes no Brasil.

 

Confesso que entre encarar o sogro e as embaixadas, estava mais para o plano B, me parecia mais fácil e mais viável.

 

Caminhando pela cidade, da Villa Santa Catarina até Las Condes passei pelas três embaixadas, e nenhuma era fácil. Todas tinham soldados postados nos portões, armados até os dentes. Para entrar seria necessário uma corrida, desviando dos milicos e uma rápida pulada de muro.

 

Pepin me recebeu fria mas respeitosamente. Ofereceu um conhaque e sentamos para conversar.

 

Expliquei que era um estudante de engenharia que tinha vindo ao Chile para me especializar, que me apaixonara por sua filha e tinha sido surpreendido pelo “movimento militar” para salvar a democracia dos comunistas.

 

Contei uma história de amor arrebatadora, onde não víamos obstáculos à nossa paixão e não conseguiríamos viver separados.

Na verdade fiz um tango de amor latino, de um estudante brasileiro por  uma linda e indefesa chileninha.

 

Senti que ficou tocado com a história de amor. Disse ainda que adorava tangos e boleros, Piazzola, Lucho Gatica, etc…

 

Cheguei a cantar pedaços de 

Tu me acostumbraste com todas esas cosas….

            Disse que tinha me acostumado e não poderia deixá-la

Voy apagar la luz para pensar em ti…

            Quando apagava a luz só pensava nela e ela em mim.

Por una cabeça… Foi o golpe final. 

 

Esse amor, essa paixão avassaladora, não poderia terminar por causa de uma conjuntura política do Chile. Garanti que iríamos para o Brasil, mas voltaríamos assim que a situação se normalizasse.

 

Ganhei o velho, pensei, e parece que o tinha ganho mesmo. Ficou meu amigo, nunca o contestei politicamente e durante muitos anos demonstrou gostar de mim.

 

Resumo. Combinamos que ficaríamos em sua casa por uma semana, até a viagem para o Brasil. Com uma única exigência da sogra, dormiríamos em quartos separados. 

 

A primeira etapa do plano tinha dado certo, mas nada garantia as seguintes. Todas as cidades do Chile estavam em estado de sítio, e para circular entre elas era necessário obter um salvo-conduto, até para sair da cidade. Assim, para sair de Santiago até o aeroporto em Pudahuel, era necessário um salvo-conduto.

 

Além disso, Maria teria que enfrentar também uma longa fila para tirar seu passaporte, que estava sendo solicitado por milhares de chilenos que só queriam fugir do país. 

 

Confirmei a passagem na Varig, fui numa loja chique do centro, comprei um terno com colete e tudo, cortei o cabelo bem curto e acabei com a barba deixando um bigodinho fino. Não gostamos da minha versão final, em vez de ficar parecendo um doutor, um engenheiro,fiquei mais com cara de detetive de polícia do Rio de Janeiro.

 

Como eu tinha saído do Brasil apenas com a carteira de identidade, e para voltar de avião exigiam passaporte para entrar no pais, fui até o consulado brasileiro. Expliquei a situação, disse que era turista e precisava de um passaporte. O funcionário riu ironicamente na minha cara. 

 

— Você turista? Há três anos no Chile? Não tem passaporte não? Volta com a carteira de identidade que no Galeão a federal cuida de ti e te arranja um passaporte rapidinho. Lá você tá em casa.

 

Fudeu, pensei outra vez. Vou ser preso ao desembarcar, mas de qualquer forma era melhor preso vivo no Brasil do que morto solto no Estádio Nacional.

 

Para conseguir o salvo-conduto, foi um dia inteiro numa fila, e quando chegou minha vez, o burocrata com medo só concordou quando mostrei a passagem de avião para o Rio de Janeiro.

 

No final, Maria conseguiu seu passaporte e nós dois os salvo-condutos.

 

Tudo pronto para a viagem, curtimos ainda a semana que nos restava na bela e confortável casa de Las Condes com minha nova, gostosa e direitista família chilena.

 

No dia da viagem, os sogros, agora muito solícitos, fizeram questão de nos levar em sua Renoleta até o aeroporto de Pudahuel .

 

No caminho, uma patrulha do exército fortemente armada revistava os carros e conferia documentos.

 

Encrencaram com o brasileiro, claro, mas meu sogro com sua auto-segurança de empresário bem sucedido, com seus quase dois metros de altura, cara de príncipe espanhol, olhos aristocraticamente azuis, assumiu minhas dores e mostrou sua carteira do Partido Nacional, o partido da direita constitucional,  braço político-civil do golpe de Pinochet.

 

Passamos, embarcamos com beijos, abraços e promessas de voltar no próximo ano.

 

Foi um grande alívio, mas passageiro. Não sabia como seria a recepção no Brasil, e esperava na chegada ir diretamente para a cadeia. Como todo estudante fichado que chegava de volta do Chile.

 

No próximo e último capítulo, a chegada no Galeão, Augusto Sussekind, meu tio Juca e a torcida do Flamengo.





sexta-feira, 2 de julho de 2021

Minha Versão - Capítulo 42 - O golpe - os tanques na 3 pontente - Os tiros no Estádio Nacional

 O golpe - os tanques na 3 poniente - Os tiros no Estádio Nacional - A invasão do ap. da Galvarino Gallardo - Os vizinhos socialistas.

O trauma do Tancazo na sexta-feira, 29 de junho ainda não tinha passado quando numa terça-feira dia 11 de setembro às sete da manhã, acordo com a cama e a casa tremendo.

 

Pensei, ainda sonolento que era mais um “temblor” (pequenos terremotos)  que acontecem em Santiago quase que semanalmente, mas prestando mais atenção, o “temblor” era acompanhado de um enorme barulho de motores. 

 

Corri para a janela da sala, e afastando levemente a cortina, vi que tanques passavam na rua. Logo na “3 poniente”, uma rua tranquila e estreita da “Villa Santa Carolina onde eu morava.

 

A rua é estreita, e mal dá para passarem dois carros pequenos ao mesmo tempo, um tanque de guerra então, ocupa quase toda a largura da rua. 

Da janela vi que atiravam, com suas metralhadoras .30 para o chão da pacata “3 poniente”

 

Estratégica e taticamente a rua “3 poniente” não significa nada. Ficou claro que as rajadas das metralhadoras eram apenas para assustar e ameaçar os moradores, 

 

Agora sim, ERA O GOLPE. E constatei que tinha errado meus cálculos.

 

Eu imaginava que o golpe seria no dia 18, data nacional do Chile, quando as forças armadas desfilam exibindo todo o seu poderio. 

Mas resolveram antecipar em uma semana.

 

Segundo meu plano de fuga, havia comprado duas passagens de VARIG para o Rio de Janeiro usando todos os dólares guardados dos enviados mensalmente pelo meu querido pai. Só que eram para o dia 15, três dias antes do presumido golpe, que afinal ocorreu no dia 11, quatro dias antes da viagem.

 

É claro que essas passagens dependiam de muitas coisas, principalmente da autorização de Pepin, o pai da Marisol para liberar a viagem da filha para o exterior, sendo que ela com 18 anos era menor de idade pelas leis chilenas da época, a maior idade para viajar sem autorização dos pais era de 21 anos. 

 

Mas eu pensava, romântica e adolescentemente que o convenceria do nosso amor e das minhas boas intenções, embora ele fosse militante de uma milícia de extrema direita de defesa do bairro contra comunistas e exilados terroristas

 

Liguei o rádio na estação socialista que ouvia todas as manhãs, e depois de alguns minutos informando sobre os desdobramentos e avanços do golpe, subitamente saiu do ar, ficando um chiado apavorante do qual me lembro e escuto até hoje.

 

Tentei sair para ir até a praça central da Villa Santa Carolina, para quem sabe me informar  de mais notícias e comprar víveres, mas passavam novos tanque e caminhões de transporte de tropas. 

 

Resolvemos ficar quietos em casa, aguardando acontecimentos que nunca vinham, porque as rádios estavam todas silenciadas e invadidas pelo exército.

 

Felizmente tínhamos alguma coisa para comer nesses dias, e resolvemos nos trancar e aguardar.

 

No segundo dia, todas as rádios começaram a transmitir as mesmas notícias, informando que o governo da Unidade Popular tinha sido deposto, e que as Forças Armadas controlavam todo o país. E mais um monte de besteiras assustadoras, como convocando todos os asilados a comparecerem ao Estádio Nacional para serem registrados e conclamando todos os trabalhadores que ainda resistiam nas fábricas a se entregarem, senão seriam presos, etc...

 

Continuei em casa, é claro que não acreditei na história dos exilados comparecerem ao Estádio Nacional.

 

No terceiro dia, arrisquei ir novamente ao centro comercial do bairro para comprar alguma coisa para subsistência, como pão e leite.

 

No bairro, todos se conheciam, e ao chegar na padaria, o dono, “momio” reconhecidome perguntou:

 

— Oye brasilero, todavia no te agarraram? Todos aqui sabemos que eres terrorista weón. Correte de aqui que te vamos a denunciar, weón.

 

Comprei o meu pão, dei um sorriso como se fosse uma brincadeira e voltei correndo pra casa, para mais uma noite de pavor.

 

O toque de recolher terminava às sete da manhã. Sai para a avenida. Maraton para averiguar a verdadeira situação.

 

Logo que dobrei a esquina, na primeira quadra, vi no chão uns vinte corpos, fuzilados na noite anterior por desrespeitarem o “toque de recolher”.

 

Estavam alinhados um ao lado do outro na calçada, organizadamente como num desfile militar, junto ao muro de uma fábrica. Fingi não parecer chocado nem ao contrário, continuei caminhando, ao lado dos corpos dos operários como se tudo fosse completamente normal.

 

Depois vim a saber que todos os corpos fuzilados durante o toque de recolher, eram recolhidos antes das sete, mas naquele local houve um atraso. Atraso que até hoje me assombra em alguns pesadelos.

 

As casas da “población” eram pareadas duas a duas, e eu tive a sorte de que o nosso vizinho de parede fosse uma família socialista, solidária, e tinham telefone. Para não transparecer cumplicidade, pulei o muro de trás, entre os quintais e consegui ligar para Eliane. 

 

O apartamento dela na Rua Galvarino Gallardo tinha sido invadido pelo exército, denunciada pelos vizinhos direitistas, mas que procuraram armas e como nada encontraram e viram que era uma família com uma criança pequena, foram embora. 

 

Eliane, Carla e o marido estavam bem e tinham um esquema para tentar sair do pais por terra, pelos Andes.

 

Passamos ainda algumas noites de terror.

 

Como já disse num capítulo anterior, morávamos muito próximo de Estádio Nacional, para onde foi levada a maioria dos prisioneiros iniciais do golpe em Santiago.

 

A cada noite, depois do toque de recolher, vivíamos verdadeiras seções de terror. 

De hora em hora, escutava-se um saraivada de balas. Eram as execuções sumárias que aí se realizavam. Mas o pior, eram os tiros que vinham depois da saraivada. Eram o “tiros de misericórdia”, dados um a um nas cabeças dos executados para que não restasse dúvida de que foram mortos.

 

Até hoje me lembro desses tiros, porque contando, eu sabia quantos teriam sido mortos naquele fuzilamento.

 

Como salvar-me desse inferno?

 

Graças aos tangos argentinos e boleros caribeños como verão no próximo capítulo.


capítulo.


sábado, 26 de junho de 2021

Minha Versão - Capítulo 41 - O tancazo

 O Tancazo - A resistência no Pedagógico - O revólver calibre 22 - Adriana Goñi e Henrique – O MIR vai cair na clandestinidade – a “extrangeria

Foi na sexta-feira, 29 de junho de 1973, que explodiu o “Tancazo”.

Com os ânimos e acontecimentos cada vez mais acirrados, já há alguns meses eu tinha comprado um radio com ondas curtas para acompanhar as notícias do dia a dia chileno e pegar alguns programas do exterior.

Nessa sexta-feira, como todos os dias, acordei e ainda deitado liguei o rádio na minha estação preferida, uma pertencente ao Partido Socialista que tinha o melhor jornalismo.

O narrador anunciava insistentemente, seguidamente, que uma companhia de tanques havia deixado seu quartel e se dirigia para o palácio La Moneda, com o objetivo de depor o presidente Allende. Alertava e convocava a população para reagir ao golpe e instruía os militantes a se dirigirem imediatamente para seus locais de trabalho, fábricas, universidades, etc...

Era o golpe. Não vou tentar descrevê-lo já que temos inúmeros artigos disponíveis na internet

Uma ótima descrição foi feita pelo Jornalista Maurício Brum para o jornal Sul21 da Internet em 2013. No final deste capítulo deixo links para o jornal e o filme do cinegrafista argentino Leonardo Henrichsen.

Era o golpe, nos levantamos rapidamente, nos vestimos com roupas de frio, estávamos em pleno inverno e não sabíamos se, ou quando voltaríamos para casa. Coloquei os dólares no bolso interno do casaco e partimos.

Dois episódios foram marcantes nesse pré-golpe que resultou fracassado.

O primeiro foi a morte em 15 de junho de Nilton da Silva, um jovem exilado brasileiro, duas semanas antes.

Assassinado por militantes da organização facista “Patria y Libertad” que já há algum tempo se organizava como milícia armada, e prometia acabar com os exilados de esquerda de todas nacionalidades.

O segundo, foi o assassinato do cinegrafista argentino Leonardo Henrichsen que filmava para uma agência sueca e acabou gravando o próprio assassinato. Outra história conhecida é a frase de um certo tenente Pérez, da guarda policial de La Moneda, respondendo aos pedidos do Regimento Nº 2 para que se rendesse: “La Guardia muere, pero no se rinde nunca, mierda”.

Fomos para o Pedagógico porque se eu fosse para a obra, teria que ir sozinho e não saberia se voltaria a ver à Maria.

Quando chegamos, o pátio já estava cheio de gente, aguardando orientação.

Militantes do MIR organizavam as pessoas em grupos.

Haviam grupos de propaganda, de manifestantes, de trabalho e quem tivesse experiência com armas era levado para uma sala à parte.

Com minha experiência nas escolas militares, me inscrevi para compor a luta armada contra o golpe que se avizinhava. Fomos levados para uma ampla sala de aula, e ali informados que tínhamos que nos organizar em duplas, que iriamos receber uma arma por dupla.

As armas foram distribuídas, eu e Marisol recebemos um revolvinho calibre 22 da idade do velho oeste e cinco balas.

Fiquei imaginando, um tanque avançando em minha direção e eu atirando, até cinco balas, com um revólver 22. Eu sabia que um tiro de 22 não parava nem um homem forte, que dirá um tanque.

Desconfiados, passamos ali toda a tarde aguardando notícias do Tancazo e instruções.

No fim da tarde fomos informados que o Tancazo havia fracassado e que podíamos voltar para nossas casas.

Foi aí que me apavorei com o nível de organização de uma possível resistência ao golpe.

Frequentávamos um casal de grande amigos dirigentes do MIR que moravam em El Arrayán, bairro alto de Santiago. Adriana era filha de um dirigente da Federação Chilena de Futebol, portanto figura importante, e pelo lugar de sua moradia, fora de qualquer suspeita.

Chegamos e como sempre fomos muito bem recebidos. Seu companheiro da época, Enrique, era uma pessoa dessas alegres de personalidade positiva, com excelente humor e grande disposição de luta. Tomava sempre whisky, embora cultivasse uma úlcera estomacal que sempre doía ao tomar a primeira dose.

Conversamos muito sobre o Tancazo, suas causas, raízes e consequências políticas. Todos estávamos certos de que era uma antecipação desastrada do golpe que estava por vir.

Concordamos que esse golpe estava mais do que maduro para acontecer, e que seria pelos próximos dias.

Entendi que tínhamos que resistir na hora mesma do golpe, com todas as forças que dispúnhamos, pois a cada momento perderíamos capacidade de luta, principalmente armada.

Decidido a participar da resistência ao golpe, que seria comandado mais pelo MIR do que pelo Partido Socialista, me dispus a participar da luta armada no Chile, embora tenha tido minhas restrições a fazê-la no Brasil.

Num momento da conversa, finalmente perguntei de chofre à Henrique:

-- O que faria o MIR em caso de se concretizar o golpe militar nos próximos dias.

Ele respondeu com um balde de água fria:

-- O MIR vai cair na clandestinidade e combater com guerrilha rural e urbana.

Falei para mim mesmo: “já vi esse filme”.

Se o momento não fosse aproveitado pela grande união da esquerda existente , e pela mobilização popular em curso contra o golpe, a força da reação seria irresistível militarmente, e cairíamos numa ditadura como a brasileira, e a uruguaia que havia se iniciado nesse mesmo dia, com o fechamento do congresso pelos militares.

Além disso, o MIR na clandestinidade, numa guerrilha urbana, estaria fadado a um fracasso como o do Brasil, além de que os militares chilenos eram muito mais competentes que os brasileiros.

O Tancazo foi em 29 de junho. O dia 18 de setembro é a data nacional da independência chilena, como o nosso 7 de setembro, quando as forças armadas desfilam exibindo todo o seu poderio militar.

Para mim, restava claro que o golpe ocorreria no máximo até o “dieciocho”, dia nacional chileno.

Eu já estava há dois anos no Chile, e com um processo na “extrangería” solicitando visto permanente de exilado. No dia seguinte ao Tancazo e à informação de Enrique sobre a atuação do MIR e da esquerda, me convenci de que ficar no Chile era uma opção de suicídio ou cadeia.

Corri até a “extrangería” e retirei todos os papéis do meu processo de pedido de residência e pedi um visto temporário de turista de três meses.

Por incrível que pareça, isso salvou a minha vida, pois após o golpe, todos os estrangeiros exilados ou com pedido de exílio foram sumariamente executados.

TANCAZO

https://www.sul21.com.br/noticias/golpe-no-chile-40-anos/2013/06/o-tancazo-o-golpe-fracassado-de-29-de-junho/

FILME:

https://youtu.be/XrhQWzFUFS0