sábado, 19 de dezembro de 2020

Minha Versão - Capítulo 14 - A prisão - Caiu Ibiúna - Ônibus para o presídio Tiradentes

 A prisão – Caiu Ibiúna – Ônibus para o presídio Tiradentes.

 

O sábado amanheceu ainda nublado, mas sem chuva. 

 

Aos poucos fomos saindo do galpão enrolados em nossos cobertores, pois fazia frio e o sol não parecia querer dar as caras.

 

Filas no “chiqueiro” para o café da manhã, no anfiteatro para mostrar as credenciais e encontrar um bom lugar e fila atrás do morrinho onde tínhamos construídos banheiros com buracos no chão, tábuas e lonas.

 

Eu tinha recém recebido meu pão com manteiga e café e me dirigia para o anfiteatro quando vi um movimento estranho no alto dos morros à volta. 

 

Na crista de todos os morros, uma linha de soldados da Força Pública, como era conhecida a Polícia Militar de São Paulo, armados com metralhadoras descia em nossa direção.

 

Rapidamente fomos cercados e amontoados como uma boiada. 

Nos ordenaram que ficássemos em fila indiana e polícias à paisana, provavelmente do DOPS, percorriam as filas procurando as lideranças. Vladimir Palmeira, Luis Travassos, José Dirceu, Franklin Martins e outros foram logo identificados, separados da “boiada” e levados para viaturas próximas. 

 

Perdi contato com a Eliane, ela tinha ido ao banheiro bem na hora da invasão e nos perdemos. Fiquei preocupado, pois os policiais estavam muito nervosos. Esperavam encontrar resistência armada e acharam um bando de jovens armados apenas com seu idealismo, rebeldia e desprendimento, mas agora já abatidos pelo frio, pela fome e também pelo medo de estar cercado por metralhadoras portáteis.

 

Em fila, com os cobertores nos ombros e os pés cheios de lama caminhamos alguns quilômetros por uma estrada de terra até encontrarmos vários ônibus e caminhões que nos esperavam.



 


Éramos enfiados nos transportes sem nenhum critério. Íamos chegando e entrando. Entupiram os ônibus como numa lata de sardinha. Em cada ônibus iam também uns três ou quatro soldados, que não entendiam o que estava acontecendo.

 

Demoramos uma ou duas horas para partir, só saiu o cortejo depois que os 700 estavam embarcados. A saída dos ônibus foi quase um alívio, pois significava que não iam nos fuzilar ou coisa parecida. No caminho voltamos a nos animar, gritar algumas palavras de ordem e cantar canções de resistência. Os soldados nada entendiam e nada podiam fazer sem a presença de seus superiores que pudessem instruí-los. Eram jovens como nós, sem noção, só que com um capacete de guerra e uma submetralhadora.




 

Era um sábado e nos levavam para o Presídio Tiradentes, hoje demolido. No caminho gritávamos para a população o que estava acontecendo, tipo 

“Caiu o XXX Congresso da UNE” , 

“Somos estudantes, estamos sendo presos por defender a democracia”, “Abaixo a Ditadura”,

“Fora o Imperialismo”,

“Avisem a imprensa”.

 

Na chegada ao presídio já havia alguma imprensa registrando a prisão. No caminho entre o ônibus e o presídio, tentávamos contato com gritos, mas os soldados nos empurravam.

 

Fomos instalados no segundo andar. Um corredor largo com muitas celas. Ficamos uns 30 a 40 por cela. Não cabiam todos deitados no chão ao mesmo tempo, então era preciso outra vez revezamento para dormir. A comida vinha duas vezes por dia e era uma pasta difícil de identificar o que tinha dentro. Era servida em potes de plástico sem talher. Tínhamos que comer com os dedos. Alguém inventou de usar a carteira de identidade como colher, e foi seguido por quase todos.

 

Os presos comuns ficavam no térreo, talvez em situação pior que a nossa, presos políticos, e tentavam estabelecer contato. Algumas lideranças que ficaram em celas próximas aos “comuns” não perderam tempo e fizeram longa doutrinação por dias seguidos. Dizem que foi a partir desse contato inicial no presídio Tiradentes que as facções organizadas do crime começaram a se estruturar como verdadeiras guerrilhas, com hierarquia, disciplina, assistência própria, etc. 

 

Diz-se que daí  teria surgido o Comando Vermelho, dedicado ao crime, mas com algum discurso anti-ditadura e libertário, como o próprio nome sugere. 

 

Não me lembro quantos dias ficamos ali jogados, talvez uma semana. Aos poucos foram nos catalogando e organizando por universidade e estado de origem. Éramos levados em grupos ao DOPS para sermos identificados, fotografados, tiradas impressões digitais e prestados depoimentos sobre o que fazíamos em Ibiúna.

 

Com o objetivo de saber onde estavam os líderes separados dos demais, iniciamos uma greve de fome, que era também para protestar pelas péssimas condições da nossa prisão. Tínhamos medo de que houvessem “desaparecido” com Vladimir, Travassos, Zé Dirceu.

 

Foram dois dias de greve até que começamos a ser removidos e enviados de volta para nossos estados, só que não diziam que estávamos sendo despachados para casa, e cada turma que saía temíamos pela sua segurança.