A cela Maracanã. A quiabada e a loteria esportiva.
Maracanã era a grande cela que eu tinha visto logo na
entrada do corredor.Era um quadrado de uns 8x8 metros com beliches encostadas
nas paredes.No meio, duas mesas de madeira juntas e umas oito cadeiras.
Os senhores que ficavam ali, tinham adaptado bem o ambiente.
Era limpo, o “banheiro” tinha sido cercado com cortinas improvisadas com cobertores,
e ao lado, tinham montado uma pequena cozinha, com fogão, geladeira, pia e prateleiras.
O mais velho e mais gordo, com uns sessenta anos ou mais,
deveria ser o chefe. Um simpático e bonachão senhor com sotaque e feições
italianas. Os demais também muito simpáticos, faziam piada o tempo todo. Era literalmente
uma mafia, eu parecia ter entrado num filme.
Mafia de verdade, era uma quadrilha que havia sido presa,
todos ao mesmo tempo. Criaram uma corretora de bolsa de valores, meio fantasma,
“aplicavam” o dinheiro dos clientes, e aproveitavam para lavar o de outros mais
chegados. Se deram mal quando começaram a dar o golpe em conjunto com um
montepio de militares aposentados. Naquela época, os crimes “contra a economia
popular” também eram enquadrados na Lei de Segurança Nacional, criada pela
ditadura na constituição de 67. E como havia vários estrangeiros, aguardavam
uma sentença de extradição, ou algo assim.
O capo me convidou para sentar, perguntou meu nome, se eu era
preso “político” e o que eu queria comer. Claro que não dei nome nem posição
política, mas tava na cara que era estudante e militante.
-- Posso fazer um macarrãozinho ou um sanduíche de presunto
com tomate e queijo. O que prefere?.
-- Sanduíche.
-- Estudante de que?
-- Engenharia.
-- É um absurdo, prenderem meninos, estudantes inocentes só
porque discordam desses milicos de merda. Você apanhou? Quer uma aspirina.
Imagina a minha surpresa com aquilo tudo! Sabia das
torturas, dos mal tratos das masmorras da ditadura, e aquela cena Felliniana me
parecia completamente surreal.
Como eles tinham muito dinheiro e nada mais para esconder ou
confessar, subornavam todos os carcereiros para manter aquela “bella vita” dentro da cadeia. Eram os carcereiros que
faziam a faxina semanal na cela mediante um bom pagamento.
Comi meu lanche como um rei, com direito a refrigerante e
tudo. Depois fui saber que o capo, muito “buona gente” adorava cozinhar e
ajudar os outros. Os pratos eram tão bons, que nos domingos até os carcereiros
filavam o almoço da cela Maracanã.
Depois de tantas emoções, escolhi um beliche em outra cela
vazia e me larguei. Pela minha cabeça passavam cenas de como seria o dia
seguinte. De que estariam me acusando? Desde Ibiúna que não participava de nada
público.
As circunstâncias dessa prisão eram totalmente diferentes, e
muito mais perigosas que a primeira em Ibiúna. Lá éramos centenas, e eu aqui
estava sozinho. Eles me perguntavam por armas e dinheiro e mencionaram um
assalto.
Nessa época, algumas organizações armadas de esquerda já
estavam na guerrilha urbana e assaltavam, “expropriavam” bancos. Nessa guerra,
quem era pego, primeiro passava por uma tortura brutal e “científica” para
entregar companheiros, esquemas, organizações, e depois que já tinham dito tudo,
já não serviam para nada, eram executados e enterrados nas covas comuns coletivas
que só foram descobertas 20, 30 anos depois.
Tinha eu pois, motivo de sobra para esperar ser torturado no
dia seguinte. Acordei apavorado, tomei um café da manhã com pão fresquinho,
manteiga, leite, na Maracanã. Os outros presos da cela me olhavam com um ar de
preocupação e pena. Sabiam que eu logo seria chamado para o temido
interrogatório.
Até que a grade do corredor principal se abriu, um agente da
polícia me chamou e me levou para uma sala fora da cadeia. Um escritório, com
escrivaninha, cadeiras, uma mesa de reunião. À escrivaninha sentava-se o
delegado encarregado do caso. Numa mesinha ao lado, um escrivão teclava numa velha
Remington. Fazia calor, o escrivão suava, eu atribuí sua gotas de suor
escorrendo pela testa ao esforço que fazia para teclar com tamanha força e brutalidade.
O delegado fazia uma bateria de perguntas, interrompidas
pelos outros agentes, dois ou três que estavam na mesa de reunião. Todo faziam
perguntas, ameaças e acusações ao mesmo tempo. Eu, algemado, com as mãos para trás,
quase não entendia o que falavam. Perguntavam.
-- Te pegamos seu comunistinha filho da puta - Vai
entregando logo os outros, diz só os
nomes - Onde vocês guardaram o dinheiro? Onde esconderam as armas? De que organização vocês são?”
Eu tentava responder rapidamente a cada pergunta, mas eram tantas
e de todos os lados que comecei apenas a falar quem eu era. Um estudante e
trabalhador, pai de família, embora com só 21 anos, estudava e trabalhava das 7
da manhã às 10, 11 da noite, e que tinha álibi e testemunhas para qualquer dia
e hora que eles me acusassem, pois todos os dias estava o dia todo ocupado.
Senti que eles embora ainda sem acreditar muito em mim,
começaram a duvidar das próprias afirmações. Meu perfil não batia com o que
eles esperavam.
Depois de algumas horas, sem tortura física, o delegado
disse:
-- olha, já estamos pegando seus companheiros de assalto.
Amanhã vamos fazer uma acareação, e se você estiver mentindo vai se dar mal.
Me levaram de volta para a cela. Os senhores do Maracanã
preocupados perguntavam se eu tinha apanhado, se estava bem. Eu contei como
tinha sido, então o capo me disse:
-- fica tranquilo, porque se não te torturaram é porque já
sabem que você é inocente, já devem estar pegando os culpados.
Dito e feito, no dia seguinte não me chamaram, perguntei
pelo Claudinho, disseram que na mesma noite que chegamos tinha sido interrogado
e liberado em seguida. Isso me acalmou ainda mais, porque se o soltaram é porque
não tinham acusações consistentes contra nós.
Mas de tarde, começaram a chegar novos presos. Um de cada
vez, com intervalos de uma ou duas horas. Eram rapazes mais ou menos da minha
idade, mas nenhum era estudante e nada a ver com política. Esses sim, entravam
assustados, com caras inchadas, hematomas, cortes no rosto, dores nas costas.
Um tinha sangue escorrendo do ouvido. Disseram que era o clássico “telefone”, tortura que consiste em dar tapas
de mão aberta nas duas orelhas ao mesmo tempo, que além de doer muito, costumava
arrebentar os tímpanos e deixava o sujeito surdo temporariamente ou as vezes
pelo resto da vida.
Nenhum deles me reconhecera, eram uns oito e o pessoal do
Maracanã cuidava deles como de filhos. Traziam sacos de gelo, compressas de arnica,
anestésicos, limpavam feridas.
Era quarta ou quinta-feira, e achei que iria ser libertado
ainda antes do fim de semana, mas inexplicavelmente me deixaram de molho mais
uns dias.
Os “colegas de assalto” não foram mais molestados, tinham
confessado tudo, entregue o dinheiro e as “armas”, dois ridículos e velhos revolveres
38.
Eram jovens moradores de uma favela do centro do Rio, e
tinham um time de futebol. Um deles trabalhava num cartório em plena Avenida
Presidente Vargas e teve a “brilhante” idéia de assaltar o cartório. Eram tão
primários e inocentes, que a primeira coisa que fizeram com o dinheiro do
assalto foi comprar um novo jogo de camisas para o time, apreendido na casa de
um deles.
Minha foto na ficha dos arquivos do DOPS, feita quando da
prisão em Ibiúna, tinha sido confundida por uma velhinha, funcionária do
cartório. A única semelhança, é que éramos morenos, cabelos pretos e cacheados
e olhos azuis, coisa não muito comum no Rio de Janeiro.
Tudo esclarecido, com a cadeia agora cheia de novos hóspedes,
o capo decidiu fazer um belo almoço de domingo. Quando não me soltaram na
sexta-feira, me disseram para relaxar que iria ficar no mínimo ate segunda,
porque, como em todo serviço público, não tinha expediente no fim de semana.
Os mafiosos mandaram dois carcereiros fazerem compras para a
“quiabada de domingo”, famoso prato da cela Maracanã. Eu não gostava de quiabo,
mas elogiaram tanto que resolvi provar, até para não fazer desfeita com o chefe
que tinha me tratado e aos rapazes tão bem.
Chegaram com uma grande compra de domingo, quiabo, arroz,
tomate, frango, cebola, salsa, pimenta, etc... Trouxeram refrigerantes, mas se
recusaram a trazer cerveja, solicitada por muitos. Pedi que me trouxessem um
maço de Minister, e ganhei dois, os senhores não me deixaram pagar. Eu era
“convidado”.
Na sexta ou no sábado, um dos mafiosos me entregou um talão
da Loteria Esportiva, muito na moda na época, e disse para eu fazer um jogo
mínimo. Quase não acreditei, quando no sábado o carcereiro me entregou o
comprovante do jogo me chamando de “senhor”. Os outros se riam dos carcereiros
dizendo, esse aí é “Dotore”, Engenheiro, um dia vai dar emprego para vocês.
Domingo nos reunimos todos na Maracanã para comer a melhor
quiabada com frango que já comi na minha vida. Não resisti e pedi repetição.
Ele fez um grande caldeirão onde cozinhou primeiro o tomate sem casca e sem
sementes fazendo um autêntico molho italiano al sugo. Cozinhou o frango no
molho, e depois acrescentou o quiabo cortado em rodelinhas. Numa outra grande
panela, fez um arroz branco soltinho e com muito alho. Passei a adorar quiabo,
e tentei várias vezes repetir a receita. Ficaram muito boas, mas nenhuma como
do Capo Pietro.
Nos regalamos com a comida maravilhosa, e só aí entendi o
verdadeiro sentido do nome da cela. Depois do almoço, nos recostamos todos nos
beliches, em cima e em baixo, como nas arquibancadas do Maracanã para ver numa
TV gigante, um jogo do campeonato carioca e acompanhar os jogos que cada um
havia marcado no seu talão da Loteria Esportiva
Teria sido um ótimo domingo, a não ser pelo fato do Botafogo
ter perdido o jogo principal.