sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Minha Versão - Capítulo 19 - O Assalto à Casa de Saúde Dr. Eiras - A fuga para o Chile.

 O assalto à Casa de Saúde Doutor Eiras – A fuga para o Chile.

Do assalto ao Jornal Nacional com Cid Moreira. Passando pela casa do deputado do partidão, a casa da prima, nora do general, a tia Zezé e finalmente a Rodoviária Novo Rio.

 

Oito e meia da noite do dia 02 de setembro de 1971,  dava aula no Cursinho SIG, escrevia no quadro quando vi a Eliane na porta me fazendo sinais. Para eu sair urgente da sala.

 

O cursinho pré-vestibular e supletivo SIG tinha esse nome em homenagem ao ratinho símbolo e mascote do tabloide de resistência da época, O Pasquim. Sigmund Freud era o nome do rato que desafiava a censura da ditadura.

 

 O curso fora criado pelo grande amigo de Niterói, João Baptista a duras penas mantinha esse curso de sobrevivência que ajudava vários companheiros universitários que não conseguiam outros empregos e viravam professores. Eu dava aulas de Matemática e Física, no pré-vestibular e no supletivo.

 

Saí da sala e Eliane me comunicou que meu nome havia acabado de ser citado no Jornal Nacional pelo Cid Moreira, o âncora da época e de várias décadas. “Estou famoso” pensei com um sorriso irresponsável, que foi logo trocado por uma cara de pânico quando ela prosseguiu: “sua foto foi mostrada como um dos assaltantes da Casa de Saude Doutor Eiras em Botafogo, o assalto foi na hora do almoço e mataram três seguranças”.

 

Corremos para a sala do João Batista, pois não sabíamos o que fazer. Como no primeiro assalto eles chegaram no meu apartamento em horas, nesse que era muito mais grave, já deviam estar lá. A coisa era muito séria, foi um assalto feito e assumido pela ALN – Aliança Libertadora Nacional que levou em torno de 80.000 cruzeiros e as armas de todos os seguranças. Pior, a casa de saude pertencia ao então ministro da saude da ditadura. 

 

Ainda havia um fio de esperança. O Cid Moreira havia dito José Lucio de Almeida Gomes, trocado o Arruda por Almeida. O João Batista estava com visitas em casa e aconselhou que fôssemos dormir na casa de outro amigo aguardar os jornais do dia seguinte enquanto ele conversava com seu sogro que era Deputado Estadual pelo MDB, mas na verdade quadro disfarçado do PCB, o antigo “Partidão”.

Conseguimos uma ajuda corajosa do Eduardo, grande amigo de então, recém casado com a Valéria. Mas a Valéria estava grávida, já barriguda, e não poderia se arriscar a ser acusada de acoitar um “subversivo” nem deveria passar por esse stress. Resolvemos ficar apenas por uma noite e esperar O Globo impresso do dia seguinte.

 

Claro que quase não dormi, depois do café da manhã Eduardo chega com a edição do O Globo. Na primeira página as fotos e os nomes dos “guerrilheiros” assaltantes da Casa de Saude. Agora meu nome saiu correto, Arruda, mas dos doze da lista apareciam apenas dez fotos. A minha não estava.

 

Eram uma má e uma boa notícia. A má que o nome era o meu mesmo, a boa é que como não tinha saído a foto, eu poderia circular com menos perigo.

 

João Batista aparece de carro. Vem para me levar para a casa do sogro deputado, que ficava no bairro do Fonseca. Lá, em conversa com o deputado, concluímos que só restava uma saída viável, era o exílio, fugir para o Chile, único país  democrático do cone sul da América naqueles dias.

 

Ali passei a segunda noite, agora sozinho, pois a Eliane foi estudar uma forma de fuga. As várias organizações clandestinas tinham seus próprios planos, guias e rotas de fuga, mas como eu não pertencia a nenhuma, não sabia o que fazer. 

 

Eliane conseguiu contato com minha prima Ney, que morava em Laranjeiras e tinha ligações com a Juventude Universitária Católica -JUC, fundadora  da Ação Popular – AP, organização cristã/socialista/marxista muito atuante na esquerda da época. A Ney ofereceu me abrigar na casa dela enquanto o pessoal da AP montava um plano de fuga para mim. E meu pai juntava os dólares necessários para minha longa viagem por terra Rio – Santiago. Até hoje penso no que teria acontecido se minha família não pudesse arcar com os gastos da viagem. Quando me lembro disso e vários outros sacrifícios, penso em todo o amor que devo e não correspondi aos meus pais.

 

Fiquei escondido num quarto, com os devidos cuidados para não ser visto pelas pessoas da casa, nem pela empregada. Muito menos pelo sogro da Ney que era um general da linha dura e influente no governo da ditadura. Se ele soubesse, certamente me denunciaria. 

 

Ali passei umas duas semanas, e lembro que no dia 17 de setembro de 1971, o mesmo Cid Moreira no Jornal Nacional comunicava, não sem certa alegria mórbida, a captura e morte do capitão Carlos Lamarca num ataque ao foco de guerrilha rural que comandava. 

 

O fato me marcou por dois motivos, primeiro porque o nome da minha filha Carla tinha sido dado em homenagem a esse bravo militar que tinha fugido do quartel que servia com um caminhão carregado de armamento e munição suficiente para implantar um foco guerrilheiro. O segundo, é que ficava claro que a ditadura não estava poupando aqueles opositores que pegaram em armas, simplesmente fuzilava antes de prender. E eu estava sendo confundido como participante de um comando armado que teria atacado a Casa de Saude e matado três seguranças. Se fosse pego, não teria chance de explicar que tinha álibi, dava aula, etc...

 

Dois ou três dias depois da morte de Lamarca, chegou minha rota de fuga com detalhes:

Eu deveria tomar um ônibus até Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 

lá alugar um táxi aéreo para evitar a estrada Campo Grande – Ponta Porã que era fortemente vigiada como rota de fuga. 

 

Em Ponta Porã, cidade separada de Pedro Juan Caballero no Paraguai por uma larga rua principal, pegaria um táxi já pré-definido do aeroporto até o  outro lado da fronteira que permanecia sem controle durante o dia.

De Pedro Juan, tomaria um avião de linha para Assunção. 

 

Em Assunção, atravessaria o rio Paraguai de balsa para a Argentina, e já na Argentina de ônibus pelas cidades: 

Formosa,

Resistência

Reconquista

Santa Fé

Rosário

Córdoba 

e Mendoza.

 

Por motivo de segurança, e também porque não existia linha direta, deveria fazer o percurso em vários trechos, trocando de ônibus nas principais cidades.

 

Em Mendoza, finalmente, tomaria o famoso trem Mendoza-Santiago para cruzar os Andes, isso se a ferrovia estivesse desimpedida da neve e do gelo do inverno que terminava.

 

A viagem toda, seria de muito risco, pois tinha além das fronteiras internacionais, as estaduais que também eram controladas pela polícia em  países com cruéis ditaduras militares aliadas da brasileira. Eram ditadores na época, os generais Alfredo Stroessner no Paraguai e Alejandro Lanusse na Argentina. Falava-se da existência de um acordo entre as três ditaduras mais a do Uruguai de controle e extradição sumária, sem passar pela justiça, de opositores em fuga por esses países.

 

Minha querida tia Zezé, irmã de minha mãe, também corajosa e consciente do que significava a ditadura e o perigo que eu corria, foi me buscar de taxi na casa da Ney. Dormi em sua casa e no dia seguinte, iniciei a viagem pela rodoviária Novo Rio.

 

Depois de passar tantos dias escondidos, cruzei a rodoviária assustado, olhando para os lados, com medo de ser reconhecido ou estar sendo seguido.

 

Sentado na janela, no meio do ônibus quase vazio, dei um adeus emocionado para a tia Zezé que foi até lá para garantir que eu houvesse embarcado. 

 

Na emoção, pensava que se eu conseguisse chegar ao meu destino, mesmo assim não saberia quando poderia voltar, para ver meus pais, minha filha, meus amigos.

 

Relaxei para tentar descansar e guardar forças para a longa viagem. Até chegar a Campo Grande fizemos várias paradas noturnas, eu só saí do ônibus em algumas delas, para não ser visto. Era um cuidado desnecessário, pois estava ainda muito longe da fronteira, mas o medo falava mais alto.

 

Algum tempo depois da parada de Bauru, cidade a oeste de São Paulo, no meio do nada, na estrada escura como breu, o motorista estaciona no acostamento e acende as luzes. Entram uns oito soldados do exército com fuzis. Pensei, “é agora, me denunciaram e estão me buscando”. Os soldados percorreram o corredor, pediram para abrir algumas sacolas enquanto outro grupo do lado de fora abria o bagageiro e revistava as malas. 

 

Pensei que estavam procurando armas, mas qual não foi minha surpresa, alívio e até uma gargalhada nervosa quando vi que procuravam, não perigosas armas subversivas, mas laranjas.

 

Isso mesmo, eles procuravam por laranjas e qualquer outro cítrico. Estávamos na fronteira dos estados de São Paulo e Mato Grosso e como havia uma peste atacando os laranjais paulistas, evitavam que frutas cruzassem a fronteira e fossem infectar as mato-grossenses. 

 

***

 

Chegamos de manhã em Campo Grande, pego um taxi na rodoviária e vou direto para o endereço da empresa de Taxi Aéreo que me haviam fornecido no plano de fuga.

 

Nessa época, no pantanal, havia fazendas que, na cheia, só se chegava de avião. Eram muito comuns, teco-tecos monomotores para 2 pilotos e 2 passageiros. Eu tinha um tio fazendeiro em Corumbá e dois primos que tinham seus próprios aviões e trabalhavam fazendo frete para as fazendas. 

 

Consegui voar no mesmo dia, e à tarde entrava num taxi em Ponta Porã e pedi para que me levasse ao hotel La Negra. Ok, partimos e uns poucos minutos depois o carro para numa rua de terra, como quase todas nessas cidades, em frente ao hotel. Por ai não se usavam taxímetros. Achei o preço muito alto para uma corrida tão curta, e o motorista me informou “é que até aqui no Paraguai fica mais caro”.

 

Eu estava no Paraguai! Nunca imaginara que fosse tão fácil, imaginava um posto de fronteira, com alfândega, onde meu nome poderia estar na lista de possíveis fugitivos, documentos, revistas de malas, mas nada disso. Me enchi de alegria. Certamente a fronteira mais perigosa estava vencida, depois seria a entrada na Argentina.

 

Passei três dias no La Negra, aguardando o dia do avião para Assunção. O hotel era meio suspeito, mas aproveitei para desfrutar dos produtos que não existiam no Brasil, como whisky escocês e cigarros americanos.

 

Uma noite saí para visitar o Cassino. Um galpão no lado paraguaio da fronteira há uns mil metros do La Negra. Quase só tinha brasileiro, e quase não entendia nada, pois falavam um espanhol paraguaio misturado com o guarani.

 

A volta foi assustadora, pois fora da avenida que marcava a fronteira muito pouca iluminação, e tinha medo de ser assaltado, principalmente porque andava com minha reserva de dólares, não tinha coragem de deixar no hotel. Por segurança, voltei caminhando bem sobre a linha de fronteira, a essa hora com soldados brasileiros e paraguaios a cada 20 metros nas suas respectivas fronteiras e pensei na contradição de me sentir protegido pelo exército que teoricamente me perseguia.

 

***

 

Cheguei bem cedo no aeroporto de Pedro Juan, embarcamos num DC-3 da LAP – Lineas Aereas Paraguayas. Quem não conhece, o DC-3, antigo avião já com algumas décadas, pousa com o nariz bem alto e o rabo bem baixo. Assim para entrar e procurar seu assento, você tem que subir uma verdadeira rampa até a porta da cabine. Em cima da porta, bem explícito um enorme retrato de Stroessner.

 

Muita turbulência até Assunção. Essa aeronave não é pressurizada e tem que voar baixo. 

 

Minhas instruções me dirigiam para um terminal de ferry boat onde pessoas e carros cruzavam o rio Paraguai. Outra vez, nenhum controle de fronteira. Do outro lado, um ônibus bem velhinho levava até Formosa, primeira cidade argentina.

 

De Formosa até Mendoza, foram uma sucessão de ônibus, rodoviárias, guichês, e falando o mínimo possível, pois além de não saber nada de castelhano, qualquer jovem brasileiro com destino ao Chile era suspeito.

 

Os ônibus iam melhorando de qualidade na medida que me acercava de Córdoba, mas a viagem era sempre uma eterna monotonia nas enormes retas das “llanuras” argentinas. Sem curvas, sem montanhas, sempre na mesma velocidade, o ronco do motor era sonolentamente contínuo.

 

Mendoza foi uma grata surpresa, linda, com os Andes nevados ao fundo, fui para a estação de trens comprar minha passagem para o que seria o último trecho da viagem, esse sem medo, pois estaria entrando numa democracia que respeita os direitos humanos. Passei dois dias em Mendoza aguardando retirarem a neve que havia fechado um dos vários túneis do caminho.