Mendoza – Santiago e o misterioso exilado no vagão restaurante do trem.
Ufa!
Finalmente entrei no trem de Mendoza para Santiago.
Era outubro de 1971 e ainda tinha bastante neve na cordilheira, mas felizmente, depois de dois dias de espera, a linha férrea e os túneis foram desimpedidos.
Comprei a passagem num guichê com janelinha de ferros
retorcidos em rococó que pareciam os de estações de trem de filmes do velho
oeste.
Eu, minha mochila e a sacola onde ia toda a minha vida, tudo
o que eu tinha, embarcamos.
Um vagão com bancos duplos de madeira, outra vez “velho oeste”.
Ufa!
Pela primeira vez consegui relaxar em toda a viagem de fuga.
Niterói, Rio de Janeiro, Campo Grande, Ponta Porã, Pedro
Juan Caballero, Assunção, Formosa, Resistência, Reconquista, Santa Fé, Rosário,
Córdoba, San Luiz e Mendoza.
Parece que percorri toda a margem direita do Rio Paraguai e metade da Argentina.
Consegui sentar sozinho em um banco duplo de madeira, joguei
minhas coisas embaixo do banco, a cabeça para trás, respirei fundo, de olhos
fechados por uns bons minutos.
Todos os acontecimentos do último mês me vieram à cabeça como num filme acelerado, em flashes, sons, imagens.
O Jornal Nacional com o Cid Moreira citando meu nome no
assalto à casa de saúde Dr. Eiras.
Eliane interrompendo a aula de matemática que eu dava no
curso SIG.
Os esconderijos em Niterói, Botafogo e Tijuca, a rodoviária
Novo Rio com tia Zezé, a invasão noturna do ônibus na fronteira São Paulo/Mato
Grosso pelo exército.
O táxi aéreo Campo Grande - Pedro Juan, o vôo no DC3 Pedro
Juan – Assunção e finalmente a longa viagem de ônibus de Assunção a Mendoza.
Pretensiosamente projetei: um dia vou escrever essa história, foram tantas as aventuras, sustos, surpresas, aprendizados, que não poderia deixar para trás.
Um menino de 21 anos com um turbilhão de idéias na cabeça, sem nenhuma experiência de vida, numa aventura de filme, filme de 007.
Fugia de uma ditadura passando por outros dois países com ditaduras militares semelhantes que tinham um acordo de repatriar qualquer opositor que ousasse cruzar suas fronteiras.
Chamavam esse acordo, orientado pela CIA de “Operação
Condor”.
O trem subia a cordilheira, neve para todo lado, paredões de gelo, eu ia feliz, aliviado.
No meu vagão, um senhor de cabelos brancos e fala nordestina, embora escondesse seu português, sentou-se na minha frente com uma brasileirinha simpática de longos e lisos cabelos negros.
Não trocamos palavra durante a primeira parte da viagem.
Eles falavam baixinho entre si, como que para esconder a
nacionalidade.
Cruzamos a fronteira juntos.
Numa mera formalidade, Carabineiros de Chile pediram nossos documentos e apresentei minha carteira de identidade, pois estava impedido de tirar passaporte.
O senhor de cabelos brancos e sua acompanhante também
apresentaram os seus.
Tensão no ar.
Sem problemas.
Passamos pelos policiais argentinos e chilenos sem qualquer observação, eram apenas burocratas cumprindo seus papéis.
Cruzada a fronteira nos olhamos e pela primeira vez trocamos
sorrisos, o alívio ficou claro, pairando no ar. Surgiu uma cumplicidade entre
nós.
Começamos a conversar em português, que delícia poder interagir
usando sua própria língua.
Na conversa, é claro, como era costume na época entre
exilados, não se perguntava nomes, origens, etc... Apenas conversas
superficiais.
Eu sabia que aquele cara não me era estranho.
Chegando a Santiago, fui buscar em artigos de jornais e
livros (ainda não existia Internet) a foto daquela figura.
Era um cara muito parecido com João Amazonas, alto dirigente
do PCdoB.
Durante muito tempo achei que tínhamos viajado juntos para o exílio no Chile.
Outra possibilidade seria Julião, das ligas camponesas de Pernambuco?
Só agora, com Internet e Wikipedia, vi que o João nunca se exilou no Chile, mas na Albânia, e Julião foi para o México. Mas pode ter sido ele, pois nessa época usava-se essa rota para chegar ao México, pois era impensável sair por um aeroporto em voo internacional.
Com essas e outras impressões, erros e fatos surpreendentes
para quem não viveu essa época, concluí que valia a pena narrar essa historia
de 007, concretizando o projeto imaginado naquele trem Mendoza-Santiago de
Chile em outubro de 1971.