sexta-feira, 9 de julho de 2021

Minha Versão - Capítulo 43 - A visita de Rosi & Rodrigo - o Pepín sabe de tudo - o plano de fuga

 A visita de Rosi & Rodrigo, o Pepin sabe de tudo - A fuga para embaixadas - Argentina – Panamá – Bélgica.

 

Para uma kombi em frente de casa.

Saltam Rodrigo e Rosi e entram assustados, olhando para os lados, para os cantos, para a rua e para o quintal.

 

Rodrigo:

 

— La cagaste huevón, el Pepin sabe de todo,

            Dice que la pollito no vive con amigas de la facultad,

            Peor, que vive con un hombre,

            Peor, que vive com un exiliado brasilero,

            Peor todavía, que vive com um guerrillero comunista terrorista.

            Dice que te vá a denunciar a la policía.

 

Meu primeiro pensamento foi: FUDEU, estou morto!

 

Pepin, como carinhosamente chamávamos o meu futuro sogro, havia voltado há alguns meses da Índia, onde fazia cursos para vir a ser um mestre de yoga.

 

Acontece que como todo médio empresário, industrial, apesar de yoga, odiava a esquerda, e na sua volta havia se alistado numa milícia de direita de defesa da sua quadra e bairro, andavam armados e eram treinados para impedir as invasões de residências pelos favelados, notícia “fake” com que a mídia assustava a classe média.

 

Além disso, eram incentivados a denunciar qualquer pessoa do bairro que tinha comportamento “suspeito” como usar barba, cabelo grande, ler constantemente, possuir muitos livros, ou exercer ou estudar ciências humanas, como história, sociologia, psicologia, antropologia, etc… 

 

Certamente me denunciaria, pois só agora vinha a saber que a história que a família, a começar pela esposa, lhe contava sobre a filha caçula era tudo mentira.

 

Enquanto estava estudando na Índia, as cartas lhe diziam que sua filhinha querida, a preferida, a caçula, la pollito, assim chamada por ter sido uma menininha doce e loirinha como um pintinho, tinha entrado para a Universidad de Chile e fora morar com umas amigas perto da faculdade.

 

Depois do golpe, mandou averiguar e descobriu tudo. Declarou em casa que havia se inteirado da verdade e que denunciaria o brasileiro que sequestrara sua filhinha, para que fosse preso e ela voltasse para casa.

 

Eu estava literalmente FUDIDO.

Não tinha saída. Ou convencia o Pepín de que eu era um cara legal, bem intencionado, etc, ou pulava o muro de uma embaixada, das poucas que ainda estavam aceitando refugiados e não devolviam os “puladores de muro” ao exército chileno.

 

Resolvi encarar as duas últimas saídas.

 

Através da Rosi, e com o apoio da minha futura sogrinha, a quem até hoje devo a vida, combinei de agendar uma conversa com o sogro para dois dias depois, antes que ele me denunciasse.

 

Na vizinhança, todos sabiam da minha condição e calculavam que mais dia menos dia viriam me buscar para o Estádio Nacional. Isso significava que uma vez saindo de casa, não teria como voltar. Minha missão então ficava mais difícil.

 

Tinha que convencer o sogro de que eu era um cara legal, que permitisse que sua filhinha querida viajasse comigo para o Brasil, e que me acoitasse em sua casa por uma semana, até o dia da viagem com passagem já comprada pela Varig. Pedi asilo e a mão de sua filha, ao mesmo tempo.

 

Usei o lado argentino/sentimental dele. Era filho de argentinos que emigraram para o Chile onde ele veio a nascer.

 

Como todo argentino, era um romântico, adorava um tango, uma milonga, uma história de amor, um bolero. E foi o que contei.

 

Passamos uma tensa mas agradável tarde juntos, no escritório da casa de Las Condes.

 

Meu plano era convencer meu sogro, até então meu desconhecido, a permitir que sua filha menor de idade casasse comigo, fosse comigo para o Brasil, que ele desse autorização para que ela tirasse passaporte, viajasse para o exterior sendo menor de idade, e o mais difícil de tudo, que eu ficasse morando em sua casa até a viagem e que nos levasse ao aeroporto, uma vez que só se passava nas barreiras militares com um salvo-conduto e em carro próprio.

 

Caso não conseguisse essa missão, que me parecia quase impossível, o plano B era pular o muro da embaixada da Argentina, Panamá ou Bélgica, que eu soube que ainda não devolviam os puladores de muro.

 

Mapeei as embaixadas, vesti o máximo de roupas possíveis, pois não poderia sair carregando mala, coloquei todo o dinheiro no bolso interno do meu casaco, junto com dois comprimidos de Librium doados pela vizinha socialista ao nos despedir. Além do calmante, de um grande abraço dela e do marido, me benzeu e desejou que tivéssemos sorte e fossemos felizes no Brasil.

 

Confesso que entre encarar o sogro e as embaixadas, estava mais para o plano B, me parecia mais fácil e mais viável.

 

Caminhando pela cidade, da Villa Santa Catarina até Las Condes passei pelas três embaixadas, e nenhuma era fácil. Todas tinham soldados postados nos portões, armados até os dentes. Para entrar seria necessário uma corrida, desviando dos milicos e uma rápida pulada de muro.

 

Pepin me recebeu fria mas respeitosamente. Ofereceu um conhaque e sentamos para conversar.

 

Expliquei que era um estudante de engenharia que tinha vindo ao Chile para me especializar, que me apaixonara por sua filha e tinha sido surpreendido pelo “movimento militar” para salvar a democracia dos comunistas.

 

Contei uma história de amor arrebatadora, onde não víamos obstáculos à nossa paixão e não conseguiríamos viver separados.

Na verdade fiz um tango de amor latino, de um estudante brasileiro por  uma linda e indefesa chileninha.

 

Senti que ficou tocado com a história de amor. Disse ainda que adorava tangos e boleros, Piazzola, Lucho Gatica, etc…

 

Cheguei a cantar pedaços de 

Tu me acostumbraste com todas esas cosas….

            Disse que tinha me acostumado e não poderia deixá-la

Voy apagar la luz para pensar em ti…

            Quando apagava a luz só pensava nela e ela em mim.

Por una cabeça… Foi o golpe final. 

 

Esse amor, essa paixão avassaladora, não poderia terminar por causa de uma conjuntura política do Chile. Garanti que iríamos para o Brasil, mas voltaríamos assim que a situação se normalizasse.

 

Ganhei o velho, pensei, e parece que o tinha ganho mesmo. Ficou meu amigo, nunca o contestei politicamente e durante muitos anos demonstrou gostar de mim.

 

Resumo. Combinamos que ficaríamos em sua casa por uma semana, até a viagem para o Brasil. Com uma única exigência da sogra, dormiríamos em quartos separados. 

 

A primeira etapa do plano tinha dado certo, mas nada garantia as seguintes. Todas as cidades do Chile estavam em estado de sítio, e para circular entre elas era necessário obter um salvo-conduto, até para sair da cidade. Assim, para sair de Santiago até o aeroporto em Pudahuel, era necessário um salvo-conduto.

 

Além disso, Maria teria que enfrentar também uma longa fila para tirar seu passaporte, que estava sendo solicitado por milhares de chilenos que só queriam fugir do país. 

 

Confirmei a passagem na Varig, fui numa loja chique do centro, comprei um terno com colete e tudo, cortei o cabelo bem curto e acabei com a barba deixando um bigodinho fino. Não gostamos da minha versão final, em vez de ficar parecendo um doutor, um engenheiro,fiquei mais com cara de detetive de polícia do Rio de Janeiro.

 

Como eu tinha saído do Brasil apenas com a carteira de identidade, e para voltar de avião exigiam passaporte para entrar no pais, fui até o consulado brasileiro. Expliquei a situação, disse que era turista e precisava de um passaporte. O funcionário riu ironicamente na minha cara. 

 

— Você turista? Há três anos no Chile? Não tem passaporte não? Volta com a carteira de identidade que no Galeão a federal cuida de ti e te arranja um passaporte rapidinho. Lá você tá em casa.

 

Fudeu, pensei outra vez. Vou ser preso ao desembarcar, mas de qualquer forma era melhor preso vivo no Brasil do que morto solto no Estádio Nacional.

 

Para conseguir o salvo-conduto, foi um dia inteiro numa fila, e quando chegou minha vez, o burocrata com medo só concordou quando mostrei a passagem de avião para o Rio de Janeiro.

 

No final, Maria conseguiu seu passaporte e nós dois os salvo-condutos.

 

Tudo pronto para a viagem, curtimos ainda a semana que nos restava na bela e confortável casa de Las Condes com minha nova, gostosa e direitista família chilena.

 

No dia da viagem, os sogros, agora muito solícitos, fizeram questão de nos levar em sua Renoleta até o aeroporto de Pudahuel .

 

No caminho, uma patrulha do exército fortemente armada revistava os carros e conferia documentos.

 

Encrencaram com o brasileiro, claro, mas meu sogro com sua auto-segurança de empresário bem sucedido, com seus quase dois metros de altura, cara de príncipe espanhol, olhos aristocraticamente azuis, assumiu minhas dores e mostrou sua carteira do Partido Nacional, o partido da direita constitucional,  braço político-civil do golpe de Pinochet.

 

Passamos, embarcamos com beijos, abraços e promessas de voltar no próximo ano.

 

Foi um grande alívio, mas passageiro. Não sabia como seria a recepção no Brasil, e esperava na chegada ir diretamente para a cadeia. Como todo estudante fichado que chegava de volta do Chile.

 

No próximo e último capítulo, a chegada no Galeão, Augusto Sussekind, meu tio Juca e a torcida do Flamengo.