sexta-feira, 19 de março de 2021

Minha Versão - Capítulo 27- Uma noite de estudos com cigarros Gauloises e café - O tagliatelli frustrado e o filho de 16 anos.

 Uma noite de estudos com cigarros Gauloises e café - O tagliatelli frustrado e o filho de 16 anos. 

 

Quem nunca fumou Gauloises, não sabe o que é ficar de porre e ressaca apenas com cigarros.

Gauloises é um cigarro francês, do tipo “negro”, isto é, fortíssimo.

 

No grupo latino-americano criado no Pedagógico continuávamos curtindo toda nossa libertária irresponsabilidade.

 

Passeios, festas, porres, paqueras. 

Estudávamos também muito, apaixonados que éramos pela Antropologia. Líamos e discutíamos muitos autores, Margaret Mead, Malinowsky, Durkhein, mas nosso norte era o Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, e nosso estudo preferido:  "As estruturas elementares de parentesco"

 

O relacionamento com Kiray era meio sigiloso. Como acabava de se separar, não queria se expor, principalmente no seu círculo de amigos da CEPAL. Assim eu passava como um “colega brasileiro da faculdade”, mas o pessoal da galera desconfiava e muito.

 

Uma noite, finalmente, teria a oportunidade de conhecer a casa de Kiray. 

Tínhamos um trabalho de grupo de uma das cadeiras de Antropologia e resolvemos fazer uma leitura em comum e discussão sobre o livro do trabalho. Kiray ofereceu a casa para a reunião.

 

Eu, para me exibir, prometi fazer um “tagliatelli” autêntico que tinha aprendido na casa de Nelson Pereira dos Santos, esse mesmo, o cineasta. 

 

Acontece que Nelson morava com a família na rua Mem de Sá em Icaraí, Niterói. Sua esposa Laurita, cursava comigo e Eliane as aulas de antropologia da faculdade de Ciências Sociais da UFF, e costumávamos estudar juntos. Por isso ficamos muito amigos, apesar da diferença de idade. Eu e Eliane com 20 e eles por volta dos 40.

 

A casa do Nelson era uma festa constante, e muito frequentada por atores, pintores, escritores, intelectuais...

Nessa época, estava filmando em Parati o clássico “Como era gostoso o meu francês”, onde um grupo de índias se encantam com um marinheiro náufrago francês, no caso o Arduino Colassanti, lindo, alto, jovem e loiro de olhos azuis. 

 

Como era costume nas tribos, elas se apropriam do francês, o mimam de todos os jeitos, com massagens, rede, banhos e comidas. O francês fica maravilhado com a boa vida no meio de uma meia dúzia de lindas indiazinhas, que como dizia Pero Vaz Caminha tinham suas partes “muy saradinhas”. Elas usam e abusam do seu brinquedo, até que um dia resolvem provar o gosto daquela carne tão branquinha e apetitosa. Arduino é assado na fogueira, vira churrasco e é comido em partes, como fala o título do filme.

 

Arduino e seu pai Manfredo, gordo italiano de forte sotaque, muita alegria e vastos cabelos brancos, frequentavam a casa de Nelson, e um dia Manfredo resolve fazer um tagliatelli para todos. Trabalhamos todo o dia com bom vinho italiano, cortando e pendurando para secar os longos fios da massa.

 

Descascar tomate, tirar as sementes e cozinhar num panelão preparando o molho que depois recebe a carne já cozida cortada a facão em pedaços mínimos como deve ser o verdadeiro molho bolonhesa.

 

Cheguei cedo na casa de Kiray para preparar o jantar que pretendíamos comer antes de começar a estudar. Eu abria a massa, cortava e passava as tiras para que os outros fossem pendurando nos varais de barbante que espalhamos por toda cozinha. Enquanto secava a massa, preparamos o molho e abrimos várias garrafas de vinho.

 

Molho pronto, todos já bem embalados com o vinho, escolhi uma grande panela, enchi de água, coloquei no fogo e joguei os talharins todos dentro.

 

Eu, na minha prepotência de chef, e com a cabeça feita com tanto vinho, só esqueci de esperar que a água fervesse. Resultado, a massa, cortada, pendurada e seca com duas ou três horas de trabalho, embolou toda na água fria da panela acabando com o sonho do maravilhoso “tagliatelli”.

 

Com muita vergonha, aceitei que Kiray fizesse uma panelada de arroz para comermos com o molho.

 

Pronto o jantar, desce do segundo andar onde ficavam os quartos, um belo rapaz, maior do que eu, seríssimo, com cara de poucos amigos e Kiray nos apresenta:

— Este es mi hijo.

 

Foi um choque para mim. Não podia imaginar que a minha namorada secreta tivesse um filho quase da minha idade. Ele aparentava uns 18 anos, mas ainda tinha 16.

 

Passado o trauma, fomos todos para a sala ao lado começar a leitura e discussão do livro, que não lembro mais qual era.

 

Fumávamos Viceroy, LM, Marlboro, Lucky Strike. Mas de repente os cigarros acabaram. E só estávamos conseguindo permanecer acordados com muito café e cigarro. Naquela época, depois das 10 da noite não se encontrava comércio aberto onde se pudesse comprar um maço.

 

Kiray descobriu um pacote com dez maços de Gauloises numa estante. Eu não conhecia, mas todos fumamos, e muito. Fumar Gauloises só se compara a fumar charuto tragando. 

Voltei a ficar tonto, mas agora pelo efeito não do vinho, mas do Gauloises.

 

Cansado, uma noite inteira sem dormir, a garganta e os pulmões entupidos de cigarro, vi pela expressão de Kiray que não poderia ficar em sua casa. Era semana do filho ficar com ela, e em hipótese alguma eu poderia dormir lá.

 

Voltei para casa triplamente frustado, por ficar sozinho, pelo fracasso do tagliatelli e por conhecer o filho de Kiray, maior e mais bonito do que eu me achava. 

 

Mas em tudo se aprende um pouco. Me consolei pensando que no próximo fim de semana Kiray ficaria comigo na casa de Jones, dividindo meu colchãozinho no chão do quarto. 

 

Já era novembro e as noites ainda eram frias, e no sábado teria como me aquecer melhor de noite. Mas foi só um sonho. A ilusão se desfez .... no próximo capítulo.