sábado, 2 de janeiro de 2021

Minha Versão - Capítulo 16 - O gosto da liberdade.

  

O gosto da liberdade.

 

Seu Solly Negreiros, pai da Eliane, meu futuro sogro, foi me buscar no quartel de cavalaria. Aqui vale uma homenagem a esse grande homem. Seu Solly, um  metalúrgico morador inicialmente em São Gonçalo e depois em Icaraí, Niterói, era a própria expressão da candura, empatia, paciência e simpatia. Nunca alterava a voz, nunca se exaltava e sempre tinha razão. 

 

Para que fossemos libertados, era necessário que alguém da família fosse nos buscar para assinar um “Recibo” de que estávamos vivos e inteiros. É verdade, quase ninguém ficou com traumas físicos, mas todos levaram para o resto da vida um trauma psicológico, em maior ou menor grau dependendo de cada um.

 

Meus pais, muito abalados, não tiveram condições de me buscar na prisão, e seu Solly, que já tinha retirado a Eliane do DOPS de Niterói alguns dias antes, foi me buscar também. 

 

Eliane e todos os delegados do Estado do Rio de Janeiro foram de ônibus para Niterói, que era a capital do estado. Já nós, os cariocas, representantes do Estado da Guanabara, tivemos o privilégio de sermos levados de avião enquanto éramos ameaçados de virar comida de tubarão.

 

Saímos, eu, amassado, sujo, cansado, aterrorizado e seu Solly com seu doce sorriso de sempre, caminhando da Lapa até a Praça XV de Novembro.

 

Foram aproximadamente uns 10 dias de prisão, mas a minha revolta, desilusão, baixo astral, faziam parecer 100 dias. O que nos mantinha lúcidos era a camaradagem dos companheiros, a vontade de voltar à luta e a certeza de que um dia venceríamos a Ditadura.

 

Até a Praça XV,  cabeça baixa, sentimentos contraditórios, um turbilhão de novos planos, idéias. Era cedo, acho que hora do almoço, quando subimos a bordo da velha e lenta barca que atravessaria a Baía da Guanabara. 

 

Desde os dez anos de idade, quando entrei para o Colégio Militar do Rio de Janeiro, fazia diariamente essa travessia (ainda não tinha a ponte). Foi sempre um momento de relaxamento, e eu sempre adorei o trajeto. 

 

Sol radiante, mar de almirante, barca imensa e pouca gente, sentei na janela da direita como gostava. Coloquei a cabeça para fora da janela e vi o Pão de Açúcar, o Aeroporto Santos Dumont, a entrada da barra com o Forte de Lajes, a ilha de Vilegagnon, e finalmente a ilha da Boa Viagem, as praia do Gragoatá, Icaraí, já quase em Niterói. A brisa do mar encheu minhas narinas, senti até o gosto da água salgada. 

 

A água que provava quando mergulhava na Pedra da Itapuca ou Pedra do Índio entre as praias de Icaraí e praia das Flechas para pegar siris, mariscos ou simplesmente ondas em dias de vento sul. 

 

Os olhos se marejaram, agora de lágrimas mesmo. Como é maravilhosa a liberdade! A partir daí, aprendi que a Liberdade tem gosto de brisa do mar.

 

***

 

Morávamos na rua Otávio Carneiro 18, esquina com a praia de Icaraí. 

Minha mãe, aflita na janela, esperou minha chegada durante toda a manhã. Imagina a emoção de ver o filho único que poderia não ter visto nunca mais.

 

Abraços, beijos, carinhos e promessas de que tudo vai mudar...

É verdade, em 1967, como já contei, fiquei com duas matérias para recuperar em 1968.

 

1968 foi o ano que nunca acabou e para mim também, nunca acabei as matérias do segundo ano e nem aquelas que ficara dependente do primeiro. Eu tinha que “tomar jeito”, porque mais um ano perdido seria excluido daquela excelente faculdade pública e gratuita, o ano escolar de 1968 em novembro, já estava perdido.

 

Com muito medo, voltei à faculdade em São Cristóvão, pois agora era fichado e a qualquer momento podiam querer me prender por um motivo fútil qualquer. Mas não tinha jeito, o ano estava perdido.

 

Numa dessas idas ao Rio, voltei com muita febre, médico, diagnóstico,  pneumonia, das bravas. Também pudera, um ano sem dormir direito, sem comer direito, vivendo de um lado para o outro em reuniões e manifestações.

 

Mamãe se apossou de mim e me “internou” em casa, com super alimentação, repouso e carinho. Eliane continuou a faculdade de Serviço Social na UFF, e praticamente se mudou lá para casa. 

 

Minha última manifestação da antiga rebeldia foi comunicar solenemente à família que iria me casar com Eliane o mais breve possível.

 

Eu sei que meus pais não gostaram da idéia de ver o filho de 19 anos casar-se, tão jovem, com um “promissor futuro pela frente”, etc. Mas acho que viram no casamento uma possibilidade de eu me afastar da política estudantil, que em tempos de ditadura significava muita luta, perigo de prisão, tortura e até “desaparecimento” que era como os ditadores e seus sequazes chamavam os assassinatos de presos políticos sem devolução do corpo para a família.

 

Embora eu já fosse ateu, “graças a Deus”, tive que aceitar a montagem católica de mamãe para o casamento. Assim, em janeiro de 1969, casava-me com Eliane na igreja de Porciúncula de Sant’ana, em frente ao Campo de São Bento em Niterói, onde apenas nove anos antes, adorava ir às matinês no Cine São Bento, passear com minhas amadas bicicletas, comer pipoca e algodão doce.

 

Casamento com direito a terno, vestido de noiva, padrinhos, bolo e festa no salão de festas nos fundos da igreja.

 

Onze meses depois nascia minha primeira filha, Carla.

 Até hoje ela adora o mar, mora em frente à praia e pratica vários esportes aquáticos. Acho que foi porque já nasceu de frente para o mar numa maternidade localizada na praia de Charitas.

 

Nos anos de 1969 e 1970 terminei o segundo e terceiro ano da Faculdade. Pai novo, casadinho, bonitinho, trabalhando e estudando muito. De manhã aula em São Cristóvão, de tarde como desenhista e de noite como professor de Física e Matemática em cursinhos pré-vestibulares e supletivos no centro de Niterói. 

 

Em junho de 1971, já no quarto ano, faltando apenas mais um e meio para me formar, a casa caiu de novo.

 

A situação política, cada vez pior. A ditadura era onipresente, quase não se podia respirar. Até saídas noturnas para conversar com amigos em bares de Icaraí, como o saudoso Pétit Paris, eram perigosas. Havia agentes e informantes por toda parte.

 

Um dia, depois de três jornadas de estudo/trabalho, sem nenhum motivo aparente, chego cansado em casa e me aguardava uma terrível surpresa, o DOPS do Rio de Janeiro.

 

Bem, mas isso fica para o próximo capítulo...