sexta-feira, 4 de junho de 2021

Minha Versão - Capítulo 38 - Antofagasta – Iquique - Arica – pelo deserto de Atacama.

Antofagasta – Iquique - Arica – pelo deserto de Atacama.

 

A imagem que eu tinha de um deserto era aquela clássica e monótona de montanhas infindáveis de areia do deserto do Saara. 

 

Mas o Atacama, deserto mais seco do mundo, é muito mais que isso. Parece um cenário de filmes de ficção científica, de viagens a outros planetas. Realmente, o deserto de Atacama é outro, ou outros, planetas.

 

Meu destino final era Arica, última cidade da fronteira norte do Chile, que foi tomada do Perú na Guerra do Pacífico, bem como Iquique, que fica 300 quilômetros antes de Arica. Mas passaria antes por Antofagasta, também tomada da Bolívia na mesma guerra, cortando seu acesso ao mar, ao Pacífico.

 

Nosso projeto era viajar de ônibus: Santiago – Antofagasta – Iquique – Arica.

A volta seria um mês depois de avião pela LAN Chile. As passagens na época eram baratíssimas, todos podiam andar de avião, e por isso tinha-se que comprar com meses de antecedência e era impossível remarcar.

 

Poucos quilômetros depois de Santiago, ingressa-se no deserto. É ao mesmo tempo impressionante pela sua beleza e assustador por suas dimensões, secura e a infinita solidão que senti só de olhar para aquele deserto.

 

Ao invés das areias do Saara, vemos rochas enormes, montes, montanhas, vales completamente secos e com as mais diversas cores. Montanhas intensamente vermelhas, amarelas, ocres, vales azuis, cor de rosa e o branco dos salares. Enormes formações rochosas violetas como a ametista, azuis como o lápis-lazúli. Um verdadeiro cenário impressionista. O Valle de la Luna parece mesmo uma réplica de paisagem lunar.

 

Eu, vindo dos trópicos, onde por toda parte se vê o verde da vegetação, principalmente nos morros, tive uma impressão avassaladora, nenhuma vegetação, nem um capim. Fiquei realmente embasbacado. Depois da viagem, e até hoje, sonho estar nessas paisagens, sem água ou comida, impressionado com as cores e formas variadas das formações rochosas.

De dia o calor chega próximo dos cinquenta graus, e à noite a zero.

 

Durante toda a viagem, tem-se os Andes nevados à direita e o oceano à esquerda, os Andes eram sempre presentes, e conseguia ver o mar quando a estrada se aproximava da costa. 

 

Antofagasta a primeira parada, porto ligado à exploração do cobre, principal produto de exportação do Chile, fica como todas as cidades costeiras, espremida entre o deserto e o oceano. Ali percorri algumas ruas, conheci o porto e no mesmo dia segui viagem para a próxima parada.

 

A região tem episódios de revolta e repressão brutal aos trabalhadores das minas nas pequenas cidades à sua volta, como San Pedro de Atacama.

 

De Antofagasta seguimos para Iquique, e daí chegamos a Arica, uma cidade muito particular, tanto pela sua situação geográfica de fronteira quanto por sua história de ter sido tomada do Perú na guerra do Pacífico.

 

De Arica parte um trem que sobe os Andes até La Paz, estrada de ferro construída para manter o acesso da Bolívia ao mar, resultado de um acordo dos dois países depois do Chile ter tomado toda a parte costeira da Bolívia. A ferrovia tem o apelido de Ferrovia da Coca, e os motivos pode-se imaginar.

 

Por essas condições, e também por ser um belo destino turístico, Arica tem gente de todos os tipos, de todas partes do mundo, chilenos, peruanos, bolivianos, chineses, argentinos, europeus, e turistas de toda América, do sul e do norte. 

 

Por estar nas fronteiras, tem um próspero comércio de coca, da folha e da refinada, de marijuana e outras drogas,  o que por sinal é até histórico e um traço cultural, pois a cultura Inca e outras que a antecederam já conheciam e utilizavam habitualmente várias substâncias alucinógenas no dia a dia e nos rituais religiosos. Aliás, as paisagens multicoloridas do deserto têm tudo a ver com as viagens psicodélicas dos produtos utilizados pelo povo inca.

 

Nessa época, a cidade era parada obrigatória para todos os “doidões”, hippies, roqueiros, easy rides seguidores de Jack Kerouac e James Dean, com suas motos barulhentas, roupas de couro colares, anéis, etc. 

 

Por Arica passa a estrada Pan-americana, conjunto de rodovias interligadas  que atravessa todo o continente americano, com aproximadamente 30.000 quilômetros, ligando desde Ushuaia na Patagônia Argentina, até Prudhoe Bay no Alaska. É claro que viver a aventura de percorrer essa estrada de moto, ou parte dela, era o sonho de todo beatnik da época.

 

Com todas essas características, podemos imaginar o conjunto das “tribos doidonas” que se encontravam e o que realizavam na cidade.

 

Resumindo, muita droga, sexo e rock and roll. Existiam inúmeras bandas de rock vivendo em comunidades, e apresentando shows diários de graça.

 

Mas apesar de toda essa “tribo urbana”, o maior espetáculo de Arica estava na natureza.

 

Ao contrário do Atlântico, onde o sol nasce no mar, no Pacífico ele morre no mar, todos os dias... 

 

Como nunca chove, e as nuvens são raríssimas, o pôr do sol é sempre um grande e deslumbrante espetáculo.

 

São muitas as cores, do vermelho intenso ao laranja e amarelo, além dos diferentes tons do azul e verde que se alternam no azul profundo do mar.

 

Ele, uma enorme bola de fogo entra e se apaga no oceano, indo iluminar a Ásia do outro lado do Pacífico. É uma lenta descida, e quando finalmente começa a mergulhar, quase se escuta o chiado da água fervendo ao apagar aquela bola de fogo. Dependendo do estado em que se encontra, tem espectador que jura ter ouvido o chiado da água fervendo.

 

Toda essa descrição poética de “la posta del sol” tem muito a ver com a impressão transmitida pela galera que vai assistir; num estado de espírito calmo, tranquilo, quase no Nirvana.

 

Acontece que na avenida Costanera, um calçadão de frente para o mar onde se dá o espetáculo, dezenas de pessoas sentam-se desde cedo numa mureta larga e baixa  para apreciar o fenômeno, e só saem de lá quando começa a escurecer.

 

A poesia se deve, em parte, a uma banda que está sempre por perto tocando blues para os espectadores, e ao fato de estarem todos chapados. 

Seria realmente um desperdício apreciar um espetáculo único como esse sem antes dar uns “tapinhas” num baseado.

 

***

 

Além do programa diário no pôr do sol na Costanera, íamos à praia pela manhã e saíamos à noite para ouvir um rock e dançar um pouco. Havia lugares muito doidos e também muito alegres.

 

Tínhamos ficado num hotelzinho barato e por isso longe da costa e do maior agito. Ficava numa área, digamos, não muito confiável de Arica. 

 

Mas lá pelo quinto ou sexto dia, não queríamos ir muito longe, e resolvemos conhecer uma boate que ficava na esquina do nosso hotel.

 

A boate tinha um cartaz na porta que anunciava um strip-tease e uma garrafa de espumante de consumação. Entramos. 

 

O amplo salão ficava no fundo de um longo corredor, e o conjunto tocava boleros e guarânias. O ar era pesado, da fumaça de cigarros e da aparência dos fregueses e garçons. Estava meio vazio, sentamos à uma mesa com uma toalha de plástico, assim como as flores que a enfeitavam e uma garrafa de espumante dentro de uma geleira cujo gelo já tinha derretido há tempo.

 

O garçom muito solícito, de grandes bigodes e barriga estilo Sargento Garcia do Zorro, logo apareceu se oferecendo para colocar gelo no balde e perguntar se queríamos algo mais. Nós sempre aplicávamos um golpe para sermos bem recebidos, como turistas estrangeiros, eu falava português e a Marisol inglês com o garçom que se esforçava para entender. 

 

A “orquestra” atacou com um tango e logo depois com Lucho Gatica. 

Em seguida transformou-se num conjunto de mariachis e dá-lhe música mexicana.  

 

Tudo corria bem, até que resolvi pedir a conta, o show não estava agradando. Se não fosse a garrafa de espumante vagabundo e o Cuba Libre que tinha tomado, teria desmaiado quando vi a conta.  

 

O total era simplesmente todo o dinheiro que tínhamos para viver o resto do mês até a viagem de volta de avião, e isso que não seria possível remarcar.

 

Com a coragem que tinha adquirido com os drinks, tirei a Marisol para dançar e a fui conduzindo até a porta que dava para o longo corredor. Chegando lá, peguei sua mão e gritei: CORRE!

 

Corremos como loucos até o fim do corredor, ninguém. Estávamos livres, o golpe tinha funcionado.

 

Voltamos a caminhar tranquilos pela noite de Arica. Ao chegar no semáforo para atravessar a esquina que dava para o hotel, senti uma mão pousando sobre meu ombro dizendo: “Caballero, los voy acompañar hasta el hotel para que pague la cuenta”.

 

Era um índio com quase dois metros de altura e um de largura. Não teve jeito, fomos até o hotel, e enquanto a Marisol conversava com ele em inglês na portaria, fui até o quarto e trouxe todo o dinheiro que restava.

 

***

Tínhamos ainda três semanas até o voo de volta, e o dinheiro que sobrou não dava nem para pagar o que restava do hotel. Dia seguinte, saímos para procurar alguma coisa mais barata e encontramos um bed&breakfast bem ruinzinho, mas que podia pagar até a viagem de volta.

 

O problema era comer até lá. 

 

Apelamos para os expedientes mais insólitos. Afinal tínhamos fome e nenhum conhecido em Arica. 

 

Marisol usava todo dia um belo poncho boliviano de lã de vicunha que podia abrigar muita coisa embaixo. Na época, o Chile passava por um boicote internacional, e muitas marcas, como a Nestlé, não forneciam mais para o país. Mas tinha um leite condensado russo, com a carinha de um bebê loirinho no rótulo que passou a ser a nossa salvação. Entrávamos num mercadinho de bairro e enchíamos a sua colorida bolsa hippie peruana com latinhas de leite condensado. 

 

Faltava só comer algo salgado, para compensar tanto leite condensado.

 

Os restaurantes chilenos na época, costumavam ter disponível sobre as mesas, antes de se pedir, uma cestinha de pães “ayuyas y marraquetas”, uma garrafa de água e um pote de “pevre”, um molho delicioso feito de pimenta, tomate, cebola e coentro (silantro).

 

Entrávamos com ares de turistas ricos, eu brasileiro e ela (loira de olhos azuis) americana do meio oeste, falávamos português e inglês, comíamos um ou dois pães com pevre cada um, líamos o cardápio e não gostávamos. Pedíamos desculpas e partíamos para outro restaurante.

 

A praia de manhã e o pôr do sol no pacífico continuaram até o último dia da viagem. Sempre com a ajuda de um amigo da hora que nos passava o cigarro para um tapinha. 

 

A volta a Santiago foi um choque, uma ducha de água gelada. Voltamos para enfrentar a conspiração golpista da direita fascista chilena articulada com a CIA para a derrubada final do governo popular. 

 

Veja no próximo capítulo.