As passeatas em defesa do regime. Vicuña Maquena, Las Condes, Av. Bernardo O’Higgins - O Grupão discutindo o Brasil e o pau comendo lá fora - Fidel no estádio Nacional.
A reação popular ao golpe que se aproximava demorou a chegar.
Num governo com tantos partidos, da extrema esquerda ao centro, era difícil qualquer reação imediata.
Mas ela veio, talvez mais por iniciativa dos partidos de esquerda e dos sindicatos que do governo propriamente.
As forças mais centristas e mais moderadas da Unidade Popular receavam lançar as massas nas ruas, com medo de uma radicalização que reforçaria as posições mais à esquerda, lideradas pelo MIR – Movimiento de Izquierda Revolucionaria e desafiaria a direita e consequentemente os militares.
Mas o perigo iminente de golpe e as manifestações cada vez mais fortes da direita, convenceram os moderados à uma reação forte e popular.
Uma vez deflagrado o processo na massa, foi impossível reverte-lo.
A primeira grande manifestação coordenada pela central sindical, partidos e movimento estudantil foi arrasadora e ao mesmo tempo assustadora.
A força do povo enchendo as avenidas de Santiago com suas bandeiras e gritos de guerra, os partidos mostrando suas forças com militantes de todos os segmentos sociais, e principalmente os trabalhadores das fábricas, minas, obras, nos trazia a certeza de que venceríamos a tentativa de golpe, o fascismo e a reação das classes dominantes.
As grandes avenidas de Santiago se encheram de povo. Vicuña Maquena, Las Condes, Irarrázabal, Bernardo O’Higgins formaram rios de gente de todas as cores, etnias, nacionalidades e idades. Dos velhos operários que haviam combatido em antigas lutas aos estudantes secundaristas ainda com seus uniformes azul marinho.
Vivíamos um daqueles raros momentos históricos em que o povo toma em suas mãos as rédeas do próprio destino.
O internacionalismo proletário expressava-se naturalmente nas representações de outros países, com militantes participando das passeatas. Bolivianos, peruanos, venezuelanos, argentinos, gente de toda a “Patria Grande” de Bolívar.
Mas brasileiros eram poucos, apesar de haverem muitos exilados na época em Santiago.
Todas as organizações da esquerda brasileira representadas em Santiago, resolveram criar o “Grupão”. Funcionava como uma grande assembléia em que se debatia a conjuntura política brasileira e se travavam acirrados debates sobre as diversas formas de atuação, possíveis alianças, estratégias da revolução brasileira, etc...
Todos os sábados lá para as 10 horas da manhã, reuniam-se delegados enviados pelos diversos partidos e organizações. Participei uma ou duas vezes, mas sentia-me como um estranho. Via as reuniões como uma peça de teatro do absurdo.
Era um grupo de pessoas totalmente descoladas da realidade, achavam-se os futuros dirigentes, a vanguarda de uma revolução num pais com o qual não tinham mais ligações funcionais, pois quase todas as organizações tinham sido destroçadas pela repressão da ditadura, e sabiam cada vez menos do que realmente acontecia no Brasil.
Era como se representassem papeis numa peça que eles mesmos sabiam que era pura fantasia, para se manterem ativos e justificarem o fracasso da luta armada.
O maior absurdo dessa realidade paralela era não verem a revolução que estava acontecendo embaixo dos seus narizes e recusavam-se a participar.
Como já disse, fui uma ou duas vezes e constatei que era mais uma reunião social onde cultivavam suas próprias vaidades e reforçavam a existência do gueto brasileiro, como eu o descrevia.
Essa alienação do Grupão em relação ao Chile, me fazia cada vez mais mergulhar na luta chilena e esquecer as más notícias e a triste realidade política brasileira.
Tanto que um querido amigo escritor a quem exponho meus rascunhos, me questionou porque eu não falo de notícias do Brasil, como passavam meus parentes, amigos que lá ficaram, etc.
Respondi-lhe com a seguinte mensagem via WhatsApp:
Meu caro,
Sobre o que se passava no Brasil na época, confesso que minha imersão no processo chileno, minha ojeriza ao “gueto” dos brasileiros exilados, o fato de estar apaixonado por uma chileninha, além de só falar “chileno” e me relacionar com chilenos, fizeram que eu me desligasse do Brasil, esquecesse de lá.
Até falar português ia ficando difícil para mim. Esquecia as palavras, falava com sotaque e “pensava” em castelhano.
Mas você lembrou bem, vou incluir alguma coisa sobre esse meu processo de desnacionalização.
Abração e obrigado pelo toque.
As manifestações se repetiam, cada vez mais fortes e a Unidade Popular demonstrava acreditar que estava vencendo essa batalha, que os facistas “no pasarán” e que o golpe estava estancado.
Para mim, embora entusiasmado com a forte reação popular às primeiras manifestações golpistas, no fundo eu achava que essas posições da esquerda tinham uma certa ingenuidade, em achar que o fascismo se assustaria com a força do movimento popular.
E a esquerda foi advertida contra essa ingenuidade por ninguém menos que Fidel Castro.
Fidel visitou o Chile de Allende, visita essa que foi interpretada de várias formas, desde um apoio à experiência chilena até como uma luta interna na esquerda da América Latina.
Fidel discursou no Estádio Nacional para milhares de pessoas que lotavam o estádio como numa decisão de campeonato. Apertado na arquibancada fiquei muito impressionado com o discurso, principalmente quando ele “jogou um balde de água fria” no entusiasmo da torcida, coisa que somente um líder como ele, acostumado a lidar com multidões sabe fazer.
Falando sobre o momento político chileno, Fidel fez para a platéia a seguinte pergunta:
— Digam-me, quem há aprendido mais na luta de classes que ocorre em Chile. A direita?
E o povo respondeu num grito uníssono:
— Nooooo!
— Volto a perguntar, quem há aprendido mais, nós, a esquerda?
E o povo respondeu num grito uníssono:
— Siiiiii!
Fidel deu uma risadinha, apoiou-se no púlpito deu uma parada teatral olhando para o céu e terminou:
— Amanhã o New York Times vai dar como manchete: Fidel discorda do povo chileno. Mas companheiros, infelizmente vocês estão errados. A direita, as classes dominantes, as forças da reação aprenderam muito mais que nós em todos esses anos de luta de classes, e não podemos subestimar seu poder.
Essas palavras, embora causassem um certo desconforto ao público, foram proféticas, como se verificou nos anos seguintes.
Fidel olhando de fora a conjuntura chilena, via friamente que estávamos todos tão entusiasmados com o processo que vivíamos nos iludindo e superestimávamos nossa força.