sexta-feira, 26 de março de 2021

Minha Versão - Capítulo 28 - Llanquiray e a chegada da Eliane numa noite fria de Novembro - empanadas com vinho no El Rápido.

Llanquiray e a chegada da Eliane numa noite fria de Novembro - empanadas com vinho no El Rápido.

 

Cansado, uma noite inteira sem dormir, a garganta e os pulmões entupidos de cigarro, vi pela expressão de Kiray que não poderia ficar em sua casa. Era semana do filho ficar com ela, e em hipótese alguma eu poderia dormir lá.

 

Voltei para casa triplamente frustado, pelo cigarro, pelo fracasso do tagliatelli e por conhecer o filho de Kiray, mais alto que eu, e mais bonito do que eu me imaginava. 

 

Mas em tudo se aprende um pouco. Me consolei pensando que no próximo fim de semana Kiray ficaria comigo na casa de Jones, dividindo meu colchãozinho no chão do quarto. Já era novembro e as noites ainda eram frias, e no sábado teria como me aquecer melhor de noite. Mas foi só um sonho. A ilusão se desfez .... no próximo capítulo.

 

***

 

Sexta-feira, depois das aulas da tarde, saímos, eu e Kiray para um jantarzinho num bistrô  chique que ela frequentava, não me lembro mais o nome do restaurante nem a comida. Lembro-me apenas do vinho maravilhoso e do bairro, era em Vitacura.

 

A volta de citroneta para minha casa (do Jones) foi de muito amor, de promessas como quando a gente se identifica depois de um belo jantar, um beijo e uma garrafa de Cabernet Sauvignon.  

 

Chegamos, conversamos um pouco com Jones e a esposa com mais uma taça, até aproximadamente meia-noite, e fomos para o quarto. Kiray não estranhou o colchão no chão como eu temia, e até achou pitoresco, excitante...

 

No pequeno colchão de solteiro curtíamos felizes o momento tão esperado, quando Jones bate na porta do quarto.

 

— Zé, sai um pouquinho que preciso falar contigo.

 

Levantei muito contrariado, o que poderia ser tão importante para ele nos interromper assim? Vesti-me e já na porta do quarto Jones anuncia:

 

— Tem uma mulher batendo aí na porta dizendo que é sua esposa de Niterói. Diz que se chama Eliane.

 

Deu um branco geral, a gostosa sensação do pilequinho passou na hora. Kiray ouviu, levantou-se e começou a se vestir rapidamente:

 

— Yo no sabia que este señor era casado, me voy. 

 

“este señor” era cheio de ironia, pois sabia muito bem da minha idade e expressava assim sua raiva e desilusão.

 

Aqui cabe um ligeira explicação.

 

Eliane e eu éramos realmente casados, e tínhamos tido a linda Carlinha em 1969, quando voltei para a faculdade e fiquei quieto, só estudando e trabalhando.

 

Quando estourou o episódio do assalto à Casa de Saúde, e tive que me refugiar, já estávamos separados há uns dois meses, mas ela foi muito legal e solidária e ficou comigo, me ajudando em tudo até a fuga.

 

Eu imaginava que indo para o Chile íamos continuar separados. Mas ela considerou que o tempo que ficamos juntos na casa da minha prima, durante a fuga, tinha sido um reatamento.

 

Antes de abrir a porta da frente, nos asseguramos de que a Kiray teria escapado pelo jardim de trás.

 

Eliane estava tão feliz, com tantas novidades e aventuras na viagem, que não tive coragem de contar a verdade. Quem poderia, depois de quase dois meses separados sem esclarecer a situação.

 

Na época, eu ainda não podia me comunicar com o Brasil, fosse por carta, telegrama ou telefone, porque quem recebesse, certamente seria preso e torturado para entregar o meu paradeiro.

 

Incomunicável, sem saber nada de mim depois da fuga, Eliane decidiu ir atrás do marido, deixando a Carla com minha mãe.

 

Com alegria e excitação ela descrevia toda a viagem, o que tinha acontecido sobre o meu caso (o governo dizia que tinham sido todos presos), tudo que tinham feito no Brasil para me ajudar no Chile. Dinheiro, certificados da Faculdade de Engenharia, e outros documentos para que eu pudesse voltar a estudar no Chile. 

 

Meus pais estavam bem, a Carla também, notícias de toda a família que ficara apreensiva com a minha fuga. Minha mãe ficara de trazer a Carla assim que pudesse. Isso significava que eu teria que voltar à minha vida de casado de antes. Depois de todo esforço e toda dedicação da Eliane, não poderia deixá-la sozinha com nossa filha num país estrangeiro.

 

Meu pai tinha feito contato com um antigo colega de IBGE que estava trabalhando na CEPAL, o Elígio. Ele deu seu endereço e prontificou-se a me ajudar no que fosse possível. Eliane trouxe o endereço e o número do telefone dele.

 

Passei uns três dias mostrando Santiago para Eliane, passeamos pelo centro, que eu agora me considerava um expert, e era mesmo. Minha maior diversão em Santiago era passear pelo centro da cidade, cada recanto, cada barzinho, cada “Fuente de Soda”.

 

Como já estava há dois meses em Santiago, já tinha caminhado por todas as ruas que vão da “Alameda” ao Mapocho. Já estava falando e entendendo bem o “chileno” que é uma língua um tanto diferente do Castelhano. Na realidade estava apaixonado pela cidade e pelo povo, como sou até hoje.

 

Levei Eliane à Estação Mapocho, ao Cerro Santa Luzia. Caminhamos da Plaza Itália ao La Moneda. 

 

Mas para mim, o “Ponto Alto” dos passeios ao centro sempre terminava no “El Rápido”, uma lanchonete de empanadas diferente de tudo que se conhece por aqui.

 

O El Rápido tinha uma frente toda envidraçada, uma grande vitrine por onde se viam os clientes. Acessava-se por uma porta de vai-vem também de vidro.

 

Sempre cheio, tinha um grande balcão de madeira onde se amontoavam os fregueses. Todos em pé, não tinha mesas, cadeiras ou bancos. Os fregueses entravam, pediam, comiam e saiam, alguns saiam para comer na calçada, sempre rapidamente, acho que por isso o nome.

 

O El Rápido só tinha dois tipos de empanadas, “de queso” ou “de pino”. A de pino, com um maravilhoso recheio de carne picada a facão, azeitona, uva-passa e ovo duro.

 

Para beber, apenas o vinho da casa, mas se podia optar por “blanco o tinto” como perguntavam os garçons quando você conseguia encontrar uma vaga para chegar no balcão.

 

A maioria dos fregueses chegava e pedia no balcão “de pino”, “de queso” enquanto o garçon perguntava invariavelmente: “tinto o blanco”.

 

Supunha-se que todos comiam empanadas e tomavam vinho.Eu sempre entrava e já gritava: “una de pino, una de queso y um tinto”.

 

 

 
Paseo Bandera

El Rápido