Os
passeios de citroneta – os teatros – Astor Piazzola y su bandoneón.
A chilenita da aula de arqueologia e do acampamento da “Isla Negra” era a Marisol, com quem mais tarde me juntei e vivemos por mais de 20 felizes anos. Mas ela ainda resistia.
Nessa época meu coração estava partido em dois. Por um lado a charmosa senhora de 35 e por outro a loirinha de olhos azuis profundos de 17.
Mas Llanquiray levava muita vantagem, estava sempre a par de todos os eventos culturais de Santiago, era uma mulher madura, cheia de experiência e tinha uma Citroneta.
Não sei o que a levou a gostar de mim, eu devia ser muito chato, cheio de convicções profundas e opiniões definitivas. Acho que se dedicou a polir-me como se faz com uma pedra bruta.
Passeávamos por toda Santiago, dos Andes ao Mapocho, de Las Condes a La Bandera. Levou-me a teatros, shows, peñas, museus e fazíamos lindas caminhadas pelos parques e pela costanera do rio. Era primavera, e eu apreciava as mudanças na vegetação, coisa que não acontece no Rio de Janeiro, onde só tem uma estação do ano e é quente o ano todo.
Graças a ela aprendi muito e pelo menos passei a ter uma visão menos maniqueísta do mundo, das artes e da política.
Para mim, a arte tinha que ser engajada, ter significado e objetivo político-revolucionário. Não era tocado pela emoção de uma melodia, por uma cena de teatro, ou por um poema simplesmente de amor.
Minha catarse nesse sentido foi graças a Astor Piazzolla.
Quiray me convidou para ver uma apresentação de Piazzolla e
orquestra de bandoneones no Teatro Municipal de Santiago.
Eu não sabia quem era Piazzolla, e muito menos o que era um bandoneón.
Ela dizia que era fantástico, que havia reinventado o tango, etc.
Concordei, para não expor tanto assim minha ignorância.
Fiquei maravilhado. Fui tomado por uma emoção sem motivo, sem explicação. Na época disfarcei e escondi, mas hoje confesso que chorei com uma emoção inexplicável. Chorei apenas com a forte melodia, a emoção do tango, expressado com intensidade pela orquestra. A partir desse dia, comecei a relativizar a arte.
Graças a Llanquiray e a Piazzolla deixei boa parte
das minhas maniqueístas convicções stalinistas para trás.
***
Muitos anos depois, encontrei em Florianópolis um grande amigo que
era também apaixonado por Piazzola.
Laércio Duarte comentou comigo sobre sua obra e eu respondi por e-mail comentando sobre nossa paixão pelo reinventor do tango.
Mexendo nas pastas empoeiradas dos e-mails do meu computador, encontrei
esse que me saiu inspirado, retrata bem o meu espírito na época.
Aqui vai:
Lalá,
você sabia que eu vi um concerto de Piazzolla ao vivo no Teatro Municipal de Santiago de Chile?
Pois é, eu na ignorância dos meus 21 aninhos, em 1971, estando exilado em Chile, não sabia nada de tango, de Argentina, de bandoneón e muito menos de Piazzolla. Não sabia nem quem era esse tangueiro.
Naquela época, Santiago estava cheia de exilados de todas as ditaduras de Latino-América e era uma verdadeira feira cultural de esquerda, uma babel latina. Como diria um clichê jornalístico da época: "um efervescente cadinho cultural".
Acontece que eu estava namorando uma bondosa e paciente exilada-socióloga uruguaia (Llanquiray de León) de 35 anos, que estava se separando e teve a revolucionária atitude de acolher um jovem clandestino/moreninho brasileiro em seus lençóis.
Kiray (como a chamava carinhosamente) tentando romper minha
grosseira carcaça de ignorância marxista-leninista e dotar-me de alguma
sensibilidade cultural latino-americana, levou-me em sua Citroneta ao tal
concerto no Teatro Municipal de Santiago. Eu só aceitei ir àquela chatice
porque vislumbrava uma profícua possibilidade sexual pós-concerto.
Embeveci-me, embasbaquei-me, adorei. Talvez essa tivesse sido uma das farpas que começaram a demolir minhas convicções sobre a arte militante e a necessidade gramsciniana de um engajamento cultural das artes revolucionárias.
Abração.
Teatro Municipal de Santiago de Chile