domingo, 11 de outubro de 2020

Minha Versão - Capítulo 04 - A visita a Itapetininga. O baile de debutantes e a filha do gerente do Banco do Brasil. De como desisti da carreira militar e mergulhei na vagabundagem niteroiense.

 

Campinas, final de 65 e do meu segundo ano na EPCEX. Tinha ido bem nos estudos naquele ano, tanto que no final de novembro


 já tinha passado por média em todas as matérias, mas não podia sair ainda de férias e voltar para casa em Niterói porque havia que cumprir presença nas aulas que faltavam e nas provas de educação física e instrução militar.

 

Como recompensa por estarmos “passados” antes do fim das aulas, os alunos do terceiro ano e, por uma deferência toda especial, dois do segundo (eu entre eles) foram escolhidos para representar a escola dançando a primeira valsa (em farda de gala) com as debutantes da orgulhosa sociedade da provinciana cidade de Itapetininga. A segunda era com o namorado e a terceira com o pai, é claro.

 

E lá fomos nós, felizes num micro-ônibus verde oliva, a desempenhar tão saborosa e honrosa missão. Às famílias rotarianas cabiam alojar os jovens “cadetes”. Eu fui parar na casa do gerente do Banco do Brasil, rotunda família com um lindo casal de filhos. O rapaz, adolescente cabeludo tipo ‘Beatles’, torceu o nariz logo ao me ver, e a moça, instigante universitária com superiores ares intelectuais despertou imediatamente meu interesse, que por sinal insistia sempre no mais difícil, no inalcançável, nas musas inatingíveis. Apaixonei-me de cara.

 

Depois de um lauto almoço de massas com “minha família” itapetininguense e um breve descanso fomos para o clube treinar a valsa. Não sei se foi por uma questão de hierarquia ou por azar, nós do segundo ano ficamos com as mais feias do grupo. O salão era quente e minha debutante além de suar muito e ser extremamente feia (tinha até buço) dançava com a leveza de um barril de chopp.Valeu apenas o banho de piscina depois do ensaio.

 

Mas o baile foi puro “glamour” interiorano. As meninas chamadas uma a uma, por um mestre de cerimônia de smoking com camisa de babados tipo Elvis Presley. Conduzidas por seu cadete ao centro do salão, eram apresentadas à sociedade local. O conjunto, completamente “Jovem Guarda” atacava de Roberto Carlos, Erasmo, twist e rock and roll. De vez em quando um sambinha tipo Simonal ou Jair Rodrigues.

 

Mas o que tem esse evento a ver com a ‘Minha Versão’? Para mim tem muito a ver, pois foi exatamente nessa noite que decidi deixar a carreira militar.

 

Fim de baile estava eufórico, feliz, orgulhoso de mim mesmo e do meu desempenho com a farda de gala. Afinal, se a minha debutante era um grande bagulho bigodudo, havia muitas outras lindas pré ou pós-debutantes deslumbrando-se com os cadetes. Dançamos e namoramos até altas horas sob os olhares das mães e rosnadas dos rapazes locais, preteridos diversas vezes por suas conterrâneas. 

 

Éramos um bando de machos de uma tribo distante, garbosa e arrogante que chegou para deslumbrar e “ficar” com as virgens locais. Entre os humilhados estava o filho do rotariano gerente com o qual eu iria compartilhar o quarto no resto da noite.

 

Não deu outra, ao chegar à casa com o resto da família, o rapaz declarou que não ficava no quarto comigo, revoltou-se contra o pai e discutiu com a mãe. Mas o que mais me humilhou, deu um banho de água fria na minha vaidosa autoconfiança, foi a declaração da minha intrigante, linda, misteriosa e gostosa universitária:

 

-  mas pai, a culpa é sua por trazer esse milico reacionário, filhote da ditadura para dentro de casa! Enquanto os estudantes estão apanhando da polícia em São Paulo o senhor abriga um policial em casa.

 

Era então novembro de 1965, os estudantes universitários paulistas já enfrentavam a polícia na USP e levavam muita porrada, inclusive minha musa que estudava direito.

 

Fiquei literalmente arrasado. Não adiantava tentar explicar que eu não era reacionário, que já tinha até lido “A origem da família do estado e da propriedade privada” do Engels e o “Manifesto Comunista” de Marx. Não adiantava dizer que eu só tinha 16 anos e estava no exército, que por sua vez não tinha nada a ver com a polícia militar paulista. Era milico e pronto. 

 

Naquela noite, sozinho no quarto do rapaz que foi para o sofá da sala, com minha cabeça metida num burguês travesseiro do gerente do Banco do Brasil, resolvi que não seria militar e ainda mais, lutaria para derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo. 

 

De repente me pergunto: será que tudo não passou de um arroubo de um adolescente de 16 anos apaixonado por uma estonteante, inalcançável, revolucionária de lisos, longos e negros cabelos, estudante de direito da USP? Tarde demais para responder...

 

Naquele ano ao chegar a Niterói para as férias, esperava-me um possante Renault Gordini 1300 que meu pai acabava de comprar em troca do antigo Doufine da família. Eu e Renato (que continuava no Colégio Militar do Rio de Janeiro, porém agora como interno) deixamos o cabelo crescer e passamos três meses na praia. 

 

De manhã, jogando bola, frescobol, vôlei e paquerando as menininhas. Depois do almoço descíamos para inspecionar as domésticas que terminavam de lavar a louça e davam uma chegadinha na praia, sempre marcávamos para sair depois das dez da noite (louça do jantar). 

 

Á noitinha na calçada da praia era o footing com as paquerinhas e depois pegar o Gordini e buscar as domésticas na casa “da madrinha” para dançar na gafieira do “Mimoso Manacá”, “Flor do Abacate”, Clube dos Subtenentes e Sargentos ou no EletroVap – clube do sindicato das trabalhadoras na indústria de equipamentos elétricos, muito concorrida em Niterói e São Gonçalo. A noite acabava invariavelmente nas areias das muitas praias, ainda lindas, seguras e despoluídas de Niterói daquela época, como Icaraí, São Francisco, Charitas, Piratininga, Itaipu, Itacoatiara, etc.

 

Passamos essas férias na mais completa vagabundagem. Perto do fim das férias, declarei aos meus pais, do alto dos meus 17 anos: “não quero mais ser militar, vou estudar engenharia”.

 

Dito e feito, voltei a Campinas apenas para me desligar da Escola Preparatória e fui fazer o terceiro ano científico junto com o pré-vestibular num convênio entre o cursinho  e o Colégio Santo Antonio Maria Zaccarias. 

 

Todo o ano de 1966 foi a repetição da rotina das férias anteriores, uma descompressão dos seis anos de regime militar que tinha sido minha vida desde os 10 anos de idade.

 

Naquela época, o vestibular para engenharia era feito por uma entidade que reunia sete escolas. O aluno registrava uma ordem de prioridade e segundo sua nota era indicado para uma das opções.

 

Como o ano de 66 foi quase todo de praia, com duas ou três visitas semanais ao colégio, seria muito pouco provável passar no vestibular, menos ainda para minha primeira opção que era a UFF – Universidade Federal Fluminense, em Niterói, pertinho de casa.

 

Graças à base que havia adquirido no Colégio Militar e na Escola de Cadetes de Campinas, consegui passar para a terceira opção: a Faculdade de Engenharia da Universidade do Estado da Guanabara, depois do Estado do Rio de Janeiro.