sexta-feira, 11 de junho de 2021

Minha Versão - Capítulo 39 - A montagem do golpe pela direita facista.

 A montagem do golpe pela direita fascista. A greve dos caminhoneiros, o desabastecimento, gás, carne, pão. Papel higiênico e açúcar no Sheraton. Churrascaria em Las Condes.

 

A direita chilena, com apoio e orientação da CIA, não poderia mais admitir o processo chileno de socialização, distribuição de renda e universalização da educação e da saúde.

 

Desde o primeiro dia do mandato de Allende, essa direita começou a montar o golpe de estado contra a democracia, no modelo clássico já utilizado largamente em vários países da América Latina, como o de 1964 no Brasil.

 

A fórmula é sempre muito parecida. Como já vivi algumas, posso explicar como funciona a receita, como de um bolo.

 

Primeiramente cria-se uma massiva campanha publicitária com poucas mas insistentes “fakenews” para assustar a classe média:

 

- A esquerda é formada por comunistas que querem tomar nossas propriedades.

- Uma potência estrangeira, quer dominar o país.

- Vão colocar várias famílias para morar na sua casa.

- Vai faltar comida.

- São financiados com o “ouro de Moscou” ou agora “de Havana” ou “de Pequim”

- O Estado e as instituições estão infiltrados pelos comunistas.

- São todos ateus, vão proibir a religião e acabar com os costumes cristãos.

- Vão acabar com a família, a pátria e a liberdade.

- As eleições estão sendo fraudadas.

- etc. etc. etc.

 

O objetivo principal dessa campanha é desacreditar as instituições democráticas para justificar sua eliminação, além de apavorar a classe média que vai servir de massa de manobra em futuras manifestações de rua.

 

Num segundo estágio, conseguido o apoio da maioria de empresários e da pequena burguesia, incentiva-se a sabotagem econômica. Por iniciativa dos próprios fabricantes e comerciantes diminui-se a produção e começam a faltar produtos de primeira necessidade na ponta. Esse processo começa com os grandes monopólios, como combustíveis, farinha de trigo, aço, alumínio,  energia...

 

Com a falta de produtos, aparece o “Mercado Negro” onde tudo é vendido pelo dobro, triplo do preço, resultando numa inflação galopante. Em seguida vem a sobrevalorização do dólar e a disparada dos juros aumentando ainda mais a inflação e a fuga de capitais.

 

A esse pré-caos, largamente alardeado pela mídia golpista, que é sempre a grande maioria, pois pertencente desde sempre ao grande capital, faltam somente ser agregadas as primeiras manifestações de classes ou corporações também golpistas.

 

Algumas categorias estratégicas na economia, como caminhoneiros, policiais, mineiros, metalúrgicos, são mais facilmente cooptáveis pela “inteligentzia” golpista. O método é a criação de uma organização clandestina, onde se injeta grande quantidade de dinheiro, geralmente da CIA.

 

Essa categoria, como foram os caminhoneiros no Chile, serve de exemplo da propalada insatisfação geral da população e de alavanca para o passo seguinte.

 

Quando a mistura começa a chegar no “ponto de ebulição” iniciam-se as manifestações de rua, normalmente defendendo a família, a pátria, a propriedade privada, os costumes e a religião.

 

No Brasil de 64, foram as “Marchas da família com Deus pela liberdade”, onde a classe média mais abonada, tendo na linha de frente senhoras menopáusicas, loiras artificiais, carregavam bandeiras nacionais e cartazes pedindo “Intervenção Militar”. No Chile de 73 foi muito parecido.

 

Para os primeiros enfrentamentos, com intenções claramente terroristas, são criadas, remuneradas e treinadas milícias formadas normalmente pelos filhos violentos da burguesia e por integrantes do lupemproletariado . Esse tempero é importante para mostrar que existe violência “de ambas as partes” o que vai justificar uma intervenção também pela força, isto é, dos militares.

 

No Brasil foi criado o “CCC – Comando de Caça aos Comunistas” e o Opus Dei incentivou a criação do “Deus, Família e Propriedade”. Na Argentina foi criada a  “AAA - Alianza Anticomunista Argentina”, todos verdadeiros Esquadrões da Morte incentivados pelas ditaduras que se seguiram.

 

Outro exemplo no Brasil foram os “Camisa-Verdes” do Partido Integralista que precedeu o golpe de Getúlio em 37 e criou o “Estado Novo”.

 

No processo chileno teve muita relevância o “Patria y Libertad” que acompanhava e dava a devida logística para as manifestações de direita da classe média. 

 

Finalmente, chega a hora das lideranças golpistas fazerem o devido contato com as Forças Armadas e convencer, cooptar ou até comprar alguns generais que em sua maioria e quase por definição são contra “a baderna em que se transformou esse país, com tanta violência e corrupção”.

 

Pronto, está pronta a massa do bolo, é só levar ao forno.

 

No Chile, todos os passos foram cumpridos à risca.

 

Os caminhoneiros, como depois ficou provado, com grande financiamento da CIA e dos sindicatos mafiosos americanos, pararam o país diversas vezes. 

 

O desabastecimento que já vinha acontecendo, se agravou enormemente. Os supermercados com todas as prateleiras vazias. Não existia farinha de trigo, portanto pão. Filas enormes para se conseguir comida, gás, combustível. Filas intermináveis nos postos de gasolina.

 

Não existia carne, e quando aparecia um carregamento de frango no açougue do nosso bairro, a notícia corria como um rastro de pólvora e logo se formava uma enorme fila, e o frango, inevitavelmente, não dava para todo mundo.

 

Embora cozinhássemos pouco, eu levava nas costas por cinco quadras um bujão de gás vazio para depois de algumas horas de fila trazer um cheio de volta.

 

Não havia papel higiênico, pasta de dentes, absorventes íntimos. Carne de gado era uma raridade. O açougue chegou a vender carne de cavalo vinda da Ásia e uma merluza congelada russa, muito ruim.

 

Mas nós, pela juventude e condição social éramos naturalmente descolados desse dia a dia terrível para o resto da população, imaginava o que passariam  famílias com filhos, idosos, sem conseguir o básico para sua subsistência. 

 

Era de se esperar que 100% da população ficasse contra o governo da Unidade Popular, mas não. A consciência política da população chilena, ao contrário da brasileira era surpreendentemente sólida. A tradição dos partidos políticos, o engajamento da população mais pobre foi o que segurou o golpe por tanto tempo, e por isso mesmo o golpe de Pinochet e seus asseclas teve que ser tão sangrento, talvez o mais sangrento de todos em nossa Latino-America. A burguesia, o fascismo chileno e o Departamento de Estado dos EUA só conseguiram êxito nesse golpe a custo de muito sangue, muita prisão e muitos, muitos milhares de assassinatos.

 

Utilizávamos uma série de expedientes para superar a difícil situação geral.

Fomos algumas vezes no Sheraton, um dos melhores hotéis da cidade, falando português e inglês como em Arica, passando por turistas ricos pedíamos uma café no bar do térreo. A xícara de café era acompanhada por um potinho com cubinhos de açúcar, produto totalmente inexistente no mercado. Tomávamos o café e despejávamos os cubinhos de açúcar cristal num saquinho plástico levado para esse fim. Depois do café, íamos cada um no seu banheiro e trazíamos todos os rolos de papel higiênico disponíveis. Tudo seguia em bolsas peruanas de lã embaixo dos ponchos.

 

Não gostava de comprar no Mercado Negro, para não incentivar as ações golpistas, mas a única excessão eram os cigarros. Comprava uns pacotes  americanos contrabandeados, porque o vício era grande. 

 

Mas para as classes dominantes, o desabastecimento não assustava. Tinham seus próprios fornecedores, de carne a whisky de sapatos a esquis de neve.

 

Os restaurantes dos “barrios altos”, isto é, chiques, tinham de tudo. De churrasco a lagosta, tudo com os excelentes vinhos chilenos e franceses. 

 

Com a loucura do arrocho à economia chilena, um dólar chegou a valer 3.000 escudos, e os 100 dólares que meu pai me mandava via Elígio, se transformavam em 300.000 escudos. Uma fortuna.

 

Graças a isso, resolvi numa noite, depois de muita escassez por motivos ideológicos, checar se os ricos realmente continuavam a curtir sua boa vida de sempre como diziam os jornais de esquerda.

 

Fomos jantar um “asado” no melhor restaurante de carnes da cidade no bairro de “Las Condes”, de Santiagocidade onde não se achava qualquer tipo de carne para comprar.

 

No menu, carne bovina, suína, ovina, frango, pato e caças. Garçons elegantíssimos ofereciam um belo espumante de cortesia na entrada, te conduziam à mesa e ofereciam o serviço do “somelier” para te orientar no vinho que melhor se harmonizava com a carne que escolherias. 

 

Ficaram um pouco ressabiados com nossas roupas, meio hippies, mas se tranquilizaram e voltaram a nos sorrir quando dissemos em inglês e português que éramos um casal de turistas, americana e brasileiro em férias no Chile.