sexta-feira, 5 de março de 2021

Minha Versão - Capítulo 25 - A aula de arqueologia e a chilena de 17 aninhos. O Acampamento em Isla Negra – uma noite com Lênin. Que Hacer Em papel bíblia. Ciúmes de Pablito.

O Pedagógico ficava num amplo terreno bem arborizado, com muitos edifícios pequenos de um ou dois andares. Era como um Campus.

Numa dessas casinhas térreas ficava a sala onde assisti minha primeira aula. Era de Introdução à Arqueologia, ou coisa assim, com Don Mario Orellana.

Eu estava super interessado na aula, curtindo meu primeiro contato com esses assuntos tão interessantes, tinha que prestar muita atenção, pois além de ser uma matéria e uma ciência nova, perdia metade das palavras, pois Don Mario falava rápido, e no sotaque chileno, muito acentuado e difícil de  assimilar imediatamente.

Mas além do idioma, uma outra causa roubou o que restava da minha atenção. Uma causa de olhos azuis e longos cabelos loiros.

No meio da sala, sentava-se uma menina de 17 aninhos, loiros cabelos pelo meio das costas, uma blusinha branca com florzinhas meio hippies bordadas na beira do decote e manguinhas bufantes,  calças jeans boca de sino que se arrastava pelo chão, e já meio puída de tanto ser pisada.

Foi paixão à primeira vista, mas sem reciprocidade. Quanto mais eu olhasse, mais ela desviava o olhar com cara de poucos amigos.

Tinha entrado no Pedagógico para estudar filosofia, mas depois de uns meses resolveu passar para o departamento de Arqueologia/Antropologia.

Vários dias se passaram, com aulas e muitas conversas latino-americanas no bar em frente ao Pedagógico. Um dia, reunidos numa das mesas, um brasileiro, um venezuelano, uma uruguaia, dois bolivianos, um argentino e uns quatro ou cinco chilenos animados com “blancos y tintos”, tivemos a brilhante ideia de fazer um acampamento na costa próxima à Valparaiso e Viña del Mar.

Já tínhamos feito alguns estudos em conjunto, reuniões e trabalhos universitários, jantares. Na casa de um ou de outro, e nenhum avanço, a chileninha era dura na queda. Comecei a achar que ela era racista, porque com minha cor, comparado com a classe média de Santiago, eu era considerado um negão, e assim me chamavam: El negro brasilero.

Mas naquela tarde consegui avançar um pouco em minhas esperanças.  

Depois de algumas garrafas de Cousiño Macul, que na época era muito bom e barato, pois a vinícola ficava no fim da avenida de mesmo nome...

Um parênteses, as famosas viñas chilenas, como Undurraga, Santa Carolina, Macul, Concha & Toro e outras, ainda não tinham sido compradas por franceses e americanos, e produziam excelentes vinhos a preços honestos e sem química.

Mas voltando ao assunto, depois de algumas garrafas, voltamos à excelente idéia de fazer um acampamento, para que os estrangeiros conhecessem a praia de Neruda, em Isla Negra. Naquela época, Neruda vivia entre sua casa em Santiago, viagens ao exterior e a casa de Isla Negra. Quem sabe, teríamos até a sorte de ver a Neruda e Matilde.

Rapidamente acertamos os detalhes, um fim de semana prolongado numa floresta de pinheiros, em pequenas barracas. Pensei: “essa é a minha grande chance, como as barracas são para duas pessoas, vou convidar a chileninha para a minha.

Viagem dura de ônibus, carregando os equipamentos até a floresta, montando as barracas. Armamos  em círculo, com uma clareira no meio, viramos uma tribo, não de índios, de uma cultura estudada por antropólogos, mas de antropólogos brincando de índios.

A floresta ficava ao lado da primeira praia do Pacífico que conheci. Para mim foi uma grande novidade, pois era completamente diferente das praias brasileiras. Rochosa, areia grossa e água muito gelada. Uma beleza diferente de nossas praias tropicais.

De noite, acendemos uma bela fogueira, e foi entorno dela que tive meu primeiro contato com o Pisco. Bebida deliciosa, que lembra um vinho, mas com 40% de álcool. Tão forte e fácil de beber que rapidamente te deixa de pilequinho.

Felizmente não fui só eu a passar dos limites, ao final estávamos todos bêbados, menos Pepe que, como expliquei no capítulo anterior, não bebia.

Depois de muita conversa, o objeto da minha viagem já estava mais simpática. Conversamos muito, filosofia, história...

Os chilenos, muito formais, mesmo depois de algumas doses de pisco, continuam falando seriamente de coisas sérias.

As minhas tentativas de quebrar o climão, com as piadinhas brasileiras do meu repertório, só despertavam nela sorrisos amarelos, condescendentes.

Fomos até tarde em torno da fogueira ritual, apareceu um violão, uma quena e um bombo, cantamos músicas latino-americanas, Violeta Parra, Mercedes Sosa, carnavalitos bolivianos,

“Quena, charango y bombo, carnavalito para bailar...”

valsesitos peruanos, tangos, milongas, boleros, cuecas, e as revolucionárias de Atahualpa Yupanqui, Victor Jara, Los Quilapayuns, e tantos outros.

Era um mundo novo para mim. Nós brasileiros ao mesmo tempo que integramos fortemente e em todos os aspectos a cultura latino-americana, parece que fomos colocados de costas para ela.

Nos sentimos e agimos como se fossemos muito diferentes, mas na verdade somos a mesma coisa. Em uma noite entendi o que isso significava, e meus horizontes se ampliaram numa dimensão tão grande como uma América, “La pátria grande” de Bolívar.

Não sei como foi esse processo histórico de distanciamento de nossos “hermanos” latino-americanos, mas acredito que tenha a ver com o isolamento do império luso e, no último século, com a descaracterização cultural a que o poder e a mídia norte-americanos submeteram o Brasil e os brasileiros.

Somos tão ridículos, que a exemplo dos filmes americanos, tem brasileiros que se referem às demais nacionalidades de nosso continente como os ”Latinos”, como se fossemos Celtas ou Anglo-saxões. 

Hoje em dia, até a nossa mídia, colonizada, vira-lata, apátrida e despreparada, nas notícias e dublagem dos filmes americanos, usa ”musicista”, “antropologista”, “sociologista”, “psicologista”, para palavras tão simples e bonitas como músico, antropólogo, sociólogo, psicólogo, como usávamos antes desta lavagem cerebral a que fomos submetidos.

Voltando à nossa fogueira, eu muito empolgado, sentado ao lado da chilena, tentava acompanhar e entender as letras das músicas, cada vez mais perto...

Porém, chegou a hora que o sono dominou a todos e começamos a negociar quem dormia em que barraca. Em cada barraca dormiriam dois.

Meio que fingindo naturalidade disse para ela:

— tu te quedas comigo en la ”barraca”?

Ela não entendeu nada, pudera, barraca em castelhano é “carpa”.

Tentei explicar, e quando entendeu, fechou a cara e elegantemente respondeu:

— No huevón, me voy a la carpa de Pablito, que conosco mejor y és mucho más confiable que tu.

Foi um balde d’água fria do Pacífico. Desilusão total.

Lembro que Jones tinha me emprestado o “Que hacer” de Lenin, assim mesmo em espanhol. Grossíssimo e em papel bíblia.

Não sei se para esquecer minha frustração, afogar o ciúme de Pablito, consolar minha carência/solidão, ou para impressionar aos demais, passei o resto da noite ao lado da fogueira, de cara amarrada como uma criança birrenta tentando ler o “Que Fazer” de Lenin, sem entender nada, tendo que voltar várias vezes cada parágrafo, porque meu pensamento não saía de dentro daquela barraca.

De qualquer forma, foi uma aula de “Latino-americanidad” que prosseguiria nas semanas seguintes com lindos passeios de citroneta e descoberta tardia de algo muito raro e que causaria uma mudança profunda em minhas concepções artísticas e culturais, o “bandoneón” de Piazzola...