sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Minha Versão - Capítulo 12 - A viagem. São Paulo, um dois, feijão com arroz

 A viagem. São Paulo, um dois, feijão com arroz  

Na segunda feira, 7 de outubro de 1968 véspera da viagem, alguém com cara de estudante,  desconhecido, me passou um bilhete em pleno restaurante da faculdade.

 

O bilhete: “Dia 8, terça – 19 horas – Rodoviária – balcão Viação Cometa – loira de jeans e revista Veja debaixo do braço esquerdo”.

 

Era minha senha e meu ponto para viajar para o XXX Congresso da UNE, que eu ainda não sabia onde seria. 

 

Facilmente distingui a loira oxigenadíssima (com certeza era disfarce) que me esperava com uma passagem Rio-São Paulo na mão. Às 22 horas partiu o “Flecha de Prata” ônibus prateado, Mercedes Monobloco da Viação Cometa. Eu adorava esse modelo, nessa época muito comum nos filmes americanos em viagens interestaduais. Quando estava na Escola Preparatória de Cadetes de Campinas, uma vez por mês pegava um desses para vir a Niterói ver meus pais.

 

A loira me entregou outro bilhete e me pediu o anterior que rasgou na hora. Dizia: “Esquina Aurora com Arouche 18 horas – casal com casaco de couro no braço esquerdo”. Naquela época, a viagem durava 8 a 9 horas. Imaginei que ficaria à toa no centro de São Paulo por horas, então relaxei, tinha muito tempo pela frente para perambular, e eu sempre gostei de momentos assim, sem compromisso com nada, passeando sem destino, apenas comigo mesmo.

 

A Rodoviária de São Paulo ficava bem perto da Estação da Luz, na chamada “Boca do Lixo”. Depois de um café e um cigarro, sai passeando. A linda Estação da Luz, com seus ares das Gares Parisienses, a Avenida Ipiranga, Praça da República, Largo do Arouche, e finalmente a Rua Aurora. Nela ficavam vários cinemas que já em decadência passavam apenas porno  chanchadas brasileiras, com direito a um striptease ao vivo entre seções, durante toda a tarde. A barra era muito pesada para que eu pensasse em entrar.

 

Já cansado, faminto, e com pouco dinheiro, cheguei às 18 horas no “ponto” indicado no bilhete da loira da rodoviária, que disse se chamar Beth, mas é claro que era codinome. Na época brincávamos com a clandestinidade e todos já tinham um codinome.

 

O casal, muito simpático, com forte sotaque do interior paulista, me informou que às 21 passaria um carro para me buscar no restaurante “Um Dois Feijão com Arroz”, ali mesmo na rua Aurora, e me ofereceram um jantar.

 

Não sei se a fome, o cansaço, ou a ansiedade da tensão de poder ser descoberto e preso durante a viagem, acalmados por encontrar alguém em quem confiar, num lugar confortável, fizeram desse jantar, um dos melhores da minha vida. Até hoje me lembro do Virado à Paulista com Tutu de Feijão e ovo frito. Uma maravilha.

 

Depois que fomos presos em Ibiúna pelo crime da fazer um congresso, 612 estudantes foram processados pela Justiça Militar de São Paulo, cujo tribunal era na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, e tínhamos que comparecer para uma audiência a cada dois meses que era sempre adiada. 

 

Nos próximos 3 anos, 1969 a 1971, vários amigos processados vínhamos do Rio à Sampa em confortável trem noturno, bebendo e jogando no belo vagão restaurante. Eu sempre fazia questão de jantar antes da viagem de volta no saudoso “Um Dois Feijão com Arroz” da Rua Aurora. A viagem levava 12 horas e custava o mesmo que o ônibus. Só deixei de fazer essa viagem em 71 quando finalmente tive que me exilar no Chile com o processo ainda em andamento. Mas isso serão outros capítulos.

 

Pontualmente, ou quase, pára na porta do restaurante um DKW Vemag. O casal entra comigo e partimos. Volta a tensão. Depois de umas quadras, o carro para, o casal salta e eu fico só no banco traseiro, na frente dois homens com cara de poucos amigos.

 

Chovia, pensei comigo, garoa paulista, terra da garoa, etc. Ledo engano, a chuva foi engrossando cada vez mais, e só parou no sábado, quando estávamos todos presos a caminho do Presídio Tiradentes, apinhados em ônibus nem tão confortáveis assim.

Mais alguma quadras, o DKW para numa esquina com 4 jovens. Dois entram e me apertam no banco traseiro. Já estão molhados da chuva que não dava trégua.

 

Seguimos sem trocar uma palavra por mais de uma hora. Lembro apenas de uma rodovia, depois uma estradinha asfaltada, outra de terra, e chegando ao lado de uma floresta de pinheiros o carro para e o motorista diz para entrarmos na floresta que há uma lona onde devemos ficar. 

 

Ficamos apreensivos, e um dos meus companheiros de banco pergunta se é isso mesmo, se o motorista tem certeza que era ali, pois com o breu da noite e a chuva constante, não víamos nenhuma tenda, ou algo parecido. O motorista insiste: “dez a vinte metros para dentro da floresta tem uma cobertura de lona onde estão nos esperando”, e diz que não pode esperar porque tem que buscar mais gente em São Paulo. Saímos protestando. Depois do longo silêncio da viagem, as primeiras palavras do meus companheiros de banco denunciam um sotaque nordestino.

 

Depois de uns minutos de caminhada pela floresta, que na verdade era uma plantação de pinos, e por isso fácil de andar, encontramos uma enorme lona entendida, presa às árvores, formando como uma grande tenda.

 

Sob a tenda, haviam umas vinte pessoas. Entramos numa fila que aguardava o transporte final para o local do congresso. Éramos levados aos poucos numa Van que ia e voltava.

 

As horas passavam sob a lona, de forma tão lenta, tão escura e tão molhada que  perdi a noção do tempo. Portanto, não sei quando chegou a minha vez e dos companheiros de banco traseiro. Enquanto isso, chegavam mais estudantes, no DKV e outros carros particulares. A tenda se enchia cada vez mais.

 

Finalmente nos mandaram embarcar numa VAN. Alguns minutos num trajeto de terra esburacada e já cheio de lama, chegamos. Uma porteira com dois sentinelas. Notei meio perplexo que estavam armados. Ai “caiu a ficha”, os caras estavam brincando, treinando ou propagandeando para os delegados a guerra de guerrilha. Na hora pensei “esse negócio vai dar merda”. E deu.