sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Minha Versão - Capítulo 24 - Pedagógico – Antropologia – Arqueologia – Don Mario Orellana – O ar revolucionário – Pepe, o filósofo existencialista.

 Pedagógico – Antropologia – Arqueologia – Don Mario Orellana – O ar revolucionário – Pepe, o filósofo existencialista.

 

Os brasileiros em Santiago eram muito doidos ou muito chatos.

Eu precisava me situar, me enturmar, viver, aproveitar toda a liberdade disponível, principalmente para quem vinha de anos da atmosfera de chumbo da ditadura brasileira, principalmente pós AI-5.

Podia-se sentir no ar um cheiro de liberdade, de animação revolucionária, de latino-americanidad.

 

Santiago nessa época era o destino de todos os exilados latino-americanos, na verdade o Chile era a única democracia do continente.

Brasileiros, argentinos, uruguaios, paraguaios, bolivianos, mexicanos, peruanos, venezuelanos, colombianos. Na maioria jovens.

Como diz seu hino: “el asilo contra la opresión”.

 

Os rapazes, cabeludos como o Che ou os Beatles, as meninas com longos cabelos, tiaras hippies e longas saias a lá Janis Joplin, cabelos a Joan Baez

Éramos algo entre hippies e guerrilheiros, vivíamos entre Cuba e Woodstock.

 

Mas os brasileiros dividiam-se entre a fossa e o foco. 

Os “fosseiros“ deprimiam-se no exílio, era o “desbunde”, sequela natural após as   degradantes prisões, torturas dos militares brasileiros treinados no prazer da dor.

Era uma desilusão, desesperança após as derrotas sucessivas da luta armada ou parlamentar contra a ditadura.

 

Todos os partidos de esquerda banidos, os diretórios e sindicatos fechados, cultura e imprensa censuradas. Era impossível fazer oposição, a não ser clandestina.

 

Era realmente muito difícil passar pela tortura da ditadura e sair sem trauma, sem uma depressão, desânimo, uma descrença na humanidade. Uma enorme sensação de impotência e derrota.

 

Os “foquistas” continuavam na teoria dos focos revolucionários de Régis Debray e Guevara, queriam criar “um, dois, três, muitos Vietnãs” como dizia el Tche. 

Afinal estávamos há poucos anos da vitória da guerrilha em Cuba, e a esquerda havia se dividido entre as vias, armada ou pacífica “hacia el socialismo”  

 

Como já disse, acontece que os brasileiros exilados constituíram um gueto em Santiago.

Só discutiam política brasileira, música brasileira, cinema brasileiro, formavam grupos de amigos exclusivamente de brasileiros, falavam português o tempo todo, quando arranhavam o espanhol, era com um sotaque escrachado, chegavam a fazer as tradicionais festas brasileiras, como São João e Carnaval. 

Isso enquanto o Chile vivia uma intensa e inédita experiência socialista.

 

Eu procurei me afastar do gueto, viver o Chile, a revolução chilena, falar o espanhol com sotaque chileno, aprender a empregar no falar diário as centenas de formas da palavra “Huevón”, sem o que, você não aprende a falar “Chileno”, Weón...

 

No Brasil, além de engenharia na UEG – Universidade do Estado da Guanabara, depois do Estado do Rio, estudava também antropologia na UFF – Universidade Federal Fluminense em Niterói.

 

Para integrar-me, e para realizar meu sonho e prazer de continuar a estudar antropologia, logo nas primeiras semanas morando na “población” Torres de Macul, visitei o Pedagógico. Era, e acho que ainda é, o principal centro de faculdades de humanas da Universidad de Chile, que por feliz coincidência fica na Avenida Macul, a cinco minutos de ônibus de onde morava.

 

O Pedagógico era uma fervilhante e colorida alegria revolucionária latino-americana. 

Gente de todos os tipos, roupas, cabelos, dos mais certinhos aos mais estranhos. Tinha realmente muita gente estranha.

 

Procurei no curso de Antropologia/Arqueologia, o diretor, Don Mario Orellana, um dos mais famosos arqueólogos do Chile.

 

Como exilado, sem documentos escolares nem passaporte, era impossível matricular-me regularmente no curso, mas Orellana, um Demócrata-Cristiano muito Demócrata e pouco Cristiano, gente boa, me permitiu assistir ao curso como aluno ouvinte, como aliás vários outros jovens exilados.

 

Aí conheci a galera onde fiz muitas amizades e com que conviveria nos próximos anos.

Vivíamos entre as salas de aula e o bar/restaurante que havia em frente, uma agradável varanda cheia de mesas, boas comidas e bons vinhos.

 

Aí passei meu primeiro vexame com a língua. Gostava muito, e sempre pedia no café da manhã Ovos Mexidos com Presunto. Na frente de toda a galera, para exibir o meu castelhano, exibido como sempre, pedi ao garçon:

— Señor, por favor, me puede traer huevos revueltos con RAMÓN?

 

Foi uma grande gargalhada. Confundi, porque meu ouvido ainda não diferenciava som do R com o do J. Para mim tinham o mesmo som: RAMÓN – nome de homem e JAMÓN – presunto.

 

Conheci o meu primeiro grande amigo em Santiago, Rafael Rengifo, um poeta revolucionário venezuelano da minha idade, que me fascinava com seu falar caribeño que estava sempre fazendo um discurso bem humorado. Longos cabelos e barba castanhos como os olhos. Nas aulas, fazia intervenções importantes que impressionavam as menininhas da turma.

 

Conheci o então estudante de Filosofia Pepe Barrientos, muito doido, muito engraçado e com o humor mordaz de um anarquista espanhol. 

Não bebia, não fumava nada, nem usava drogas o que era muito estranho na época.

Corria alguns quilômetros todos os dias e só tomava banho frio, mesmo nos frios invernos Santiagueños.

 

Para mim foi uma descoberta, um cara anarquista, existencialista, de esquerda, super crítico, que no entanto era contra o governo da Unidad Popular de Salvador Allende. 

Na minha ignorância maniqueísta não conseguia entendê-lo, mas gostava muito dele, o admirava e chegaríamos a ser quase parentes como veremos adiante.

 

Conheci Pablito, um comportado menino de Ñuñoa com uns 18 anos, seríssimo, Marcela uma niña de Las Condes, Gimena, uma patricinha de lindos olhos azuis e longos cabelos negros cacheados, um rostinho de boneca,  Llanquiray de León, uma uruguaia maravilhosa a quem dedico mais adiante um capítulo inteiro. 

 

Éramos muitos, uma turma animada, livre, leve, engajada  “pero no mucho”.

 

Discutíamos Política, América Latina, música Latino Americana, Antropologia e Arqueologia. 

Conheci aí também aquela que viria a ser minha companheira por vinte longos anos, e mãe de mais dois de meus filhos, Juan e Clarisse.

Sobre esse encontro que marcou para sempre minha vida, falo no próximo capítulo.