sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Minha Versão - Capítulo 01 - Porque mais uma versão - Anos 60, Revolução Cubana, Reformas de Base, Golpe Militar, Sexo, Política e Rock and Roll

 

Porque mais uma versão.

 

 

Anos 60, Revolução Cubana, Reformas de Base, Golpe Militar, Sexo, Política e Rock and Roll, Ditaduras Militares, WoodStock, Revolução Sexual, Liberdade Liberdade, O Foquismo e Debray, Pátria o Muerte Venceremos, maconha, O livrinho vermelho do camarada Mao Tze Tung (que nem se escreve mais assim), Feminismo, Lev Davidovitch Bronstein, vulgo Trotsky ,  Debray, Marijuana, Master & Jonhson, Freud,  orgasmos múltiplos, Rolling Stones, Ligas Camponesas, Tropicália, Isaac Deutscher,  Não tome o elevador tome o poder, maio de 68, é proibido proibir. Levy Strauss, Coen Bendit, Julião, Mariguela, Gal, O Pasquim, Vietnã....É mole?

 


Já li e ouvi tantos relatos, versões e romances a respeito, que ousei perguntar, porque não a minha versão?

 

Na época certamente acharia que a minha seria, sem dúvida, a melhor versão, a mais politicamente correta, a mais engajada e revolucionária. Depois de alguns longos anos, comecei a achar que seria somente razoável, depois simplesmente desprezível, olvidável. Cheguei a achar que seria muita pretensão tentar colocar no papel minhas experiências naqueles anos.

 

Finalmente, no equilíbrio da... maturidade? Permito-me perguntar: que tal revelar ou registrar a minha versão? Nem que seja para os netos, os amigos mais íntimos e alguns (cada vez mais raros) pesquisadores daqueles tempos e lutas que mudaram (ou em que mudamos) o mundo e o Brasil.

 

Hoje me vejo à época como um observador, embora participante, mas um tanto distante. Engajado, mas sempre, com certo distanciamento que não posso chamar de crítico nem alienado. Seria um tanto literário? Eu poderia estar fazendo uma ação revolucionária, pichando um muro, gritando um discurso relâmpago num trem da Central do Brasil ou “defendendo el camino chileno hacia el socialismo” numa passeata por “La Alameda Bernardo O’Higgins” em Santiago, que padecia sempre de um constante e incômodo sentimento de ridículo.

 

Na verdade, eu nunca me senti totalmente cômodo ou engajado em coisa nenhuma, mesmo que meu romantismo me convencesse por momentos e me levasse verdadeiramente a sentir o momento (apenas o momento) com grande intensidade.

 

A História e as estórias são muito longas. Quando começo a lembrar, os episódios vêm tão ricos, tão densos e cheios de detalhes, que se fosse romancear odores, sabores, tons, luzes, pessoas e sensações, não terminaria nunca. Por isso, resolvi deixar registradas como flashes as abundantes lembranças daqueles anos. Mas como são pobres as reproduções da realidade! Que pena não dispormos de uma mídia (ou uma arte?) que conseguisse expressar tudo ao mesmo tempo.

 

Mais tarde me permitirei, caso tenha memória, vida e momentos de tranqüilidade suficientes, revisitar com detalhes esses momentos do passado, e aí sim, adornar os fatos frios, com o colo “de piel de durazno” da amada na “translucidad” outonal de uma mansarda em Valparaiso com vista para “el inespugnable” Pacífico (como diria el poeta Pablo Neruda), o pavor noturno numa cela da polícia política carioca, ou o sabor da vitória quando encarávamos os prepostos da ditadura a cantar o hino de Chico Buarque: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. E foi ..., apesar de muita borrachada.




 

SANZABEL - Capítulo 01 - Maria do Porto Rico


Ogum não devia beber,
Ogum não devia fumar,
Porque a fumaça é nuvem que passa,
E a cerveja é espuma do mar ...


Ninguém sabia direito de onde e como ela tinha vindo parar em Santa Isabel.
Morena “índia”, corpuda, cabelos pretos e lisos até as costas, olhos grandes de cigana que até assustavam e davam-lhe um tom de mistério e poder.

Alugou uma casa de madeira colorida, bem espaçosa onde recebia regularmente seus clientes para rezar e fazer os trabalhos que lhe solicitavam.

Os mais chegados, diziam que tinha vindo de Porto Rico, município à margem do Paranazão, deixando lá marido, família e uma rica história. Trouxera apenas duas filhas mais velhas que lhe serviam na casa, desde faxineiras, cozinheiras e até como cambonas. Ajudavam servindo à casa e às entidades que por ali passavam habitualmente, e mais certamente nas sextas-feiras quando a mãe recebia sua pomba-gira e dava consulta.

E não era só a pomba-gira, dependendo da necessidade e do cliente, podiam chegar também Iemanjá, Oxossi, Preto Velho, Criança e até, para resolver de vez as demandas mais cabeludas, um Exu Tranca-rua com tudo que tinha direito.

Na sexta era consulta “incorporada”, mas consulta direta, com búzios ou cartas era todo dia, não tinha hora, e cada vez era mais gente que vinha consultar.

Em pouco tempo ficou famosa pelos seus acertos, seu nome espalhou-se pela cidade como grande vidente e rezadeira. Fazia também trabalhos para os santos que ninguém mais duvidava da eficácia.

Era todo tipo de gente que vinha consultar com Maria do Porto Rico, como ficou conhecida. Homens, senhoras de família, da sociedade isabelense, mocinhas casadoiras, cornos desconfiados e convictos, doentes de todo tipo de doença, do corpo, do espírito e “das partes”.

Maria do Porto Rico curava de um tudo. Trazia marido de volta, segurava marido para não ir embora, fazia marido desistir da amante, e se fosse pedido pela corna, até deixar o cabra broxa, com a amante, em casa ou para sempre em todo tipo de serviço.

Trazia a pessoa amada de volta em três dias e tinha remédio para tudo, chá de tudo que é tipo e garrafadas das mais violentas e eficazes. Espinhela caída, barriga d’água, nó nas tripas, bicheira, tumor, frieira, gazes, impotência, etc...

Cada vez mais famosa, Maria já estava “bem de vida”, como se dizia na época. As filhas estudavam para professora no curso normal, e já eram convidadas para as tardes dançantes nas casas das amigas das melhores famílias. Todo domingo não faltavam à seção da tarde do cinema do velho Pacheco. Não perdiam uma fita de romance, ou um filme de rock and roll do Elvis. Gostavam também das aventuras do Roberto Carlos.

A casinha já estava bem ajeitada, sempre pintadinha de nova, cuidada com muito capricho pelas três. Dava para perceber o progresso financeiro e a consequente ascensão social de Maria do Porto Rico e das filhas, Ritinha e Fátima.

Cliente era o que não faltava, como nessa época em Santa Isabel todo marido tinha uma amante, a maioria das clientes queriam que Maria lesse nos búzios o nome da desgraçada para se vingarem, e pagavam qualquer coisa.

Mas quem pagava mais mesmo, eram os maridos que, com medo de Maria entregar o nome da “filial” pagavam o dobro, o triplo do que a mulher já tinha pago.

E Maria do Porto Rico só faturando. Em casa tudo novo, geladeira, fogão de 6 bocas esmaltado, jogo de panela dos mais caros, o faqueiro então “traia de patrão”, como se orgulhava Ritinha já de olho na herança. Até televisão chegaram a comprar, coisa ainda de pouco uso, porque a antena da emissora ainda não tinha sido instalada.

Porém, sempre existe um porém, um elo da cadeia de informação de Maria que digamos “adivinhava” os nomes das amantes, era uma tanto frágil, Zé Maria, viadinho saltitante e assumido que trabalhava varrendo o chão do salão do único barbeiro da cidade, o Pertence.

Embora querido e tolerado por todos os vetustos senhores fregueses, Zé Maria era quem passava os nomes, situações e detalhes íntimos e sórdidos dos encontros dos maridos. Tanto na casa das amantes, para aquelas que já tinham casa posta (teúdas e manteúdas), quanto para aqueles ainda menos experientes, ou com menos posses, que se limitavam a ter uma “fixa” na Periquita de Ouro.

A Periquita de Ouro, puteiro da cidade, era tão bom que sua fama era conhecida e atraia gente de todas as cidades vizinhas, Tapira, Douradina, Santa Cruz do Monte Castelo, Santa Mônica, de Loanda então nem se fala, não tinha macho que não tivesse ido pelo menos uma vez na Periquita.

Na primeira consulta, a possível corna só dava o nome do marido, suas desconfianças, pagava o devido e ficava de voltar daí a uma semana, o tempo necessário para Maria se comunicar com seus guias e fazer os trabalhos, que variavam de valor de acordo com as posses da visitante. Zé Maria apurava tudo no salão de barbeiro e trazia de bandeja para Maria do Porto Rico por pouco mais que uma gorjeta. Ele gostava mesmo era da fofoca.

No início, Maria entregava de vez o infeliz que acabava apanhando em casa ou ganhando um par de chifres de vingança.

Mas foi aí que a vidente descobriu uma fórmula muito mais rentável. Chamava o cafajeste, dava-lhe um esporro, uma lição de moral e ameaçava com tudo que era santo, vingança, despacho em encruzilhada para o terrível Tranca-rua e no fim vendia um trabalho muito caro para que os santos não deixassem a corna chegar a saber de nada.

Zuca, português esperto, consertava TV, rádio, máquina de escrever, etc. em sua casa ao lado do terreiro de Maria do Porto Rico, e como naquela época o movimento não era tanto assim, ficava assuntando o tempo todo e vendo um por um os que entravam para se consultar com Maria.

Com Antônia do Zequinha não foi diferente. Contra a vontade do marido, numa quarta-feira à tarde, enquanto ele fazia a sesta, roncando e babando no sofá verde da sala, foi se consultar com Maria, estava certa que Zequinha estava pulando a cerca.

Maria, como sempre, desconversou, anotou o nome do infeliz e disse que ia fazer um trabalho para Iemanjá, protetora das mulheres bonitas (Antônia achava que era...) para perguntar o nome da biscate que Zequinha andava comendo.

Cobrou a consulta e mais o custo do trabalho, saía caro porque tinha champanhe, perfume francês e rendas da melhor qualidade, Iemanjá não deixava por menos. Antônia pagou, já meio contrariada, mas pagou.

O problema é que Zuca, maior amigo do Zequinha, de muita putaria na Periquita de Ouro, viu Antônia entrando e na noite seguinte encontrou o amigo no caminho para a zona, e contou quando pararam para tomar uma no bar habitual que ficava no fim da cidade, no caminho da Periquita, chamado “O Último Gole”.

Zequinha também desconfiou do viadinho do Zé Maria. Na tarde anterior, tinha ido cortar o cabelo, e enquanto o Pertence trabalhava com pente e tesoura, o Zé Maria trazia cafezinho, água, puxava-lhe o saco descaradamente, perguntava pela Dª Antônia, e... como era mesmo o nome da menina que ele estava pegando na Periquita de que todo mundo andava comentando?

Zequinha não gostou nada da intimidade de Zé Maria, e só não mandou ele para a “puta que o pariu” em respeito à barbearia, que como sabemos é um dos lugares mais sagrados e respeitados pelos homens de cidade pequena. Templo do saber, da política e do futebol. Onde são feitas as declarações mais peremptórias e as confidências mais íntimas e profundas.

Quando soube da visita da mulher à vidente, Zequinha tomou o fato como uma verdadeira traição. “Como ela podia desconfiar dele? Homem probo e consciente dos seus deveres de pai e chefe de família. Que nunca deixara faltar nada naquela casa”. Embora merecesse, ele só não bateu nela por princípio, mas que deu vontade deu. Chegou a tirar o cinto, mas se conteve. Mas a gritaria foi grande.

Antônia não se conformou. Passou na barbearia, pegou a bichinha pelos cabelos (longos, falsamente loiros e recém escovados) e foi direto para a casa de Maria do Porto Rico.

Entrou pisando firme, sem se anunciar e chutando a porta que se escancarou derrubando e espatifando no chão o cafoníssimo jarro verde e amarelo de louça que, em cima de um tamborete, sustentava o comigo-ninguém-pode de proteção da casa.

A cachorrinha da casa, só de ver os olhos fumegantes de Antônia, correu ganindo para o quintal, chorando feito filhote.

Maria estava em frente ao congá fazendo suas orações. Antônia agarrou aqueles lindos, longos, negros e lisos cabelos de índia brava e de um só golpe deixou Maria estatelada no chão. Tirou do cinto grosso e de fivela não menos cafona que o vaso, e destruiu o congá, santo por santo, vaso por vaso, vela por vela, flor por flor. Depois foi a vez de Maria, e deu...

- Sua macumbeira de merda, me cobra uma fortuna e depois ainda conta para o meu marido que eu vim aqui. Toma sua desinfeliz, e deu...

E vapt, e vupt.

- E você sua bichinha louca, toma também para não ficar dando em cima do marido dos outros, e deu também...

A coisa foi feia. Acabaram todos na delegacia. A casa semidestruída, Maria e Zé Maria com escoriações generalizadas e Fagundes, o fotógrafo da “Folha Isabelense” fazendo as fotos que sairiam na primeira página do dia seguinte.

Alguns anos depois, tomando calmamente uma gelada na Periquita de Ouro, Zequinha pergunta pro Zuca:

- Rapaz, você se lembra daquela vidente tua vizinha? Onde será que ela anda depois que sumiu de Santa Isabel?

- Sabe não? Era Maria da Rocha. Voltou para o marido, Edenilso da Rocha. Ouviu a Palavra, converteu-se e hoje é pastora e prega junto com o Edenilso na igreja evangélica que fundaram, a “Rocha Viva do Senhor Jesus”.

Pois é, é por isso que:

Ogum não devia beber,
Porque a cerveja é espuma do mar ...