Ogum não devia beber,
Ogum não devia fumar,
Porque a fumaça é nuvem que passa,
E a cerveja é espuma do mar ...
Ninguém sabia direito de onde e como ela tinha vindo parar em Santa Isabel.
Morena “índia”, corpuda, cabelos pretos e lisos até as costas, olhos
grandes de cigana que até assustavam e davam-lhe um tom de mistério e poder.
Alugou uma casa de madeira colorida, bem espaçosa onde recebia
regularmente seus clientes para rezar e fazer os trabalhos que lhe solicitavam.
Os mais chegados, diziam que tinha vindo de Porto Rico, município à
margem do Paranazão, deixando lá marido, família e uma rica história. Trouxera
apenas duas filhas mais velhas que lhe serviam na casa, desde faxineiras,
cozinheiras e até como cambonas. Ajudavam servindo à casa e às entidades que
por ali passavam habitualmente, e mais certamente nas sextas-feiras quando a
mãe recebia sua pomba-gira e dava consulta.
E não era só a pomba-gira, dependendo da necessidade e do cliente,
podiam chegar também Iemanjá, Oxossi, Preto Velho, Criança e até, para resolver
de vez as demandas mais cabeludas, um Exu Tranca-rua com tudo que tinha
direito.
Na sexta era consulta “incorporada”, mas consulta direta, com búzios ou
cartas era todo dia, não tinha hora, e cada vez era mais gente que vinha consultar.
Em pouco tempo ficou famosa pelos seus acertos, seu nome espalhou-se
pela cidade como grande vidente e rezadeira. Fazia também trabalhos para os
santos que ninguém mais duvidava da eficácia.
Era todo tipo de gente que vinha consultar com Maria do Porto Rico, como
ficou conhecida. Homens, senhoras de família, da sociedade isabelense, mocinhas
casadoiras, cornos desconfiados e convictos, doentes de todo tipo de doença, do
corpo, do espírito e “das partes”.
Maria do Porto Rico curava de um tudo. Trazia marido de volta, segurava
marido para não ir embora, fazia marido desistir da amante, e se fosse pedido
pela corna, até deixar o cabra broxa, com a amante, em casa ou para sempre em
todo tipo de serviço.
Trazia a pessoa amada de volta em três dias e tinha remédio para tudo,
chá de tudo que é tipo e garrafadas das mais violentas e eficazes. Espinhela
caída, barriga d’água, nó nas tripas, bicheira, tumor, frieira, gazes,
impotência, etc...
Cada vez mais famosa, Maria já estava “bem de vida”, como se dizia na
época. As filhas estudavam para professora no curso normal, e já eram
convidadas para as tardes dançantes nas casas das amigas das melhores famílias.
Todo domingo não faltavam à seção da tarde do cinema do velho Pacheco. Não
perdiam uma fita de romance, ou um filme de rock and roll do Elvis. Gostavam
também das aventuras do Roberto Carlos.
A casinha já estava bem ajeitada, sempre pintadinha de nova, cuidada com
muito capricho pelas três. Dava para perceber o progresso financeiro e a
consequente ascensão social de Maria do Porto Rico e das filhas, Ritinha e
Fátima.
Cliente era o que não faltava, como nessa época em Santa Isabel todo
marido tinha uma amante, a maioria das clientes queriam que Maria lesse nos
búzios o nome da desgraçada para se vingarem, e pagavam qualquer coisa.
Mas quem pagava mais mesmo, eram os maridos que, com medo de Maria entregar o
nome da “filial” pagavam o dobro, o triplo do que a mulher já tinha pago.
E Maria do Porto Rico só faturando. Em casa tudo novo, geladeira, fogão
de 6 bocas esmaltado, jogo de panela dos mais caros, o faqueiro então “traia de
patrão”, como se orgulhava Ritinha já de olho na herança. Até televisão
chegaram a comprar, coisa ainda de pouco uso, porque a antena da emissora ainda
não tinha sido instalada.
Porém, sempre existe um porém, um elo da cadeia de informação de Maria
que digamos “adivinhava” os nomes das amantes, era uma tanto frágil, Zé Maria,
viadinho saltitante e assumido que trabalhava varrendo o chão do salão do único
barbeiro da cidade, o Pertence.
Embora querido e tolerado por todos os vetustos senhores fregueses, Zé
Maria era quem passava os nomes, situações e detalhes íntimos e sórdidos dos
encontros dos maridos. Tanto na casa das amantes, para aquelas que já tinham
casa posta (teúdas e manteúdas), quanto para aqueles ainda menos experientes,
ou com menos posses, que se limitavam a ter uma “fixa” na Periquita de Ouro.
A Periquita de Ouro, puteiro da cidade, era tão bom que sua fama era
conhecida e atraia gente de todas as cidades vizinhas, Tapira, Douradina, Santa
Cruz do Monte Castelo, Santa Mônica, de Loanda então nem se fala, não tinha
macho que não tivesse ido pelo menos uma vez na Periquita.
Na primeira consulta, a possível corna só dava o nome do marido, suas
desconfianças, pagava o devido e ficava de voltar daí a uma semana, o tempo
necessário para Maria se comunicar com seus guias e fazer os trabalhos, que
variavam de valor de acordo com as posses da visitante. Zé Maria apurava tudo
no salão de barbeiro e trazia de bandeja para Maria do Porto Rico por pouco
mais que uma gorjeta. Ele gostava mesmo era da fofoca.
No início, Maria entregava de vez o infeliz que acabava apanhando em
casa ou ganhando um par de chifres de vingança.
Mas foi aí que a vidente descobriu uma fórmula muito mais rentável.
Chamava o cafajeste, dava-lhe um esporro, uma lição de moral e ameaçava com
tudo que era santo, vingança, despacho em encruzilhada para o terrível
Tranca-rua e no fim vendia um trabalho muito caro para que os santos não
deixassem a corna chegar a saber de nada.
Zuca, português esperto, consertava TV, rádio, máquina de escrever, etc.
em sua casa ao lado do terreiro de Maria do Porto Rico, e como naquela época o
movimento não era tanto assim, ficava assuntando o tempo todo e vendo um por um
os que entravam para se consultar com Maria.
Com Antônia do Zequinha não foi diferente. Contra a vontade do marido,
numa quarta-feira à tarde, enquanto ele fazia a sesta, roncando e babando no
sofá verde da sala, foi se consultar com Maria, estava certa que Zequinha
estava pulando a cerca.
Maria, como sempre, desconversou, anotou o nome do infeliz e disse que
ia fazer um trabalho para Iemanjá, protetora das mulheres bonitas (Antônia
achava que era...) para perguntar o nome da biscate que Zequinha andava
comendo.
Cobrou a consulta e mais o custo do trabalho, saía caro porque tinha
champanhe, perfume francês e rendas da melhor qualidade, Iemanjá não deixava por
menos. Antônia pagou, já meio contrariada, mas pagou.
O problema é que Zuca, maior amigo do Zequinha, de muita putaria na
Periquita de Ouro, viu Antônia entrando e na noite seguinte encontrou o amigo
no caminho para a zona, e contou quando pararam para tomar uma no bar habitual
que ficava no fim da cidade, no caminho da Periquita, chamado “O Último Gole”.
Zequinha também desconfiou do viadinho do Zé Maria. Na tarde anterior,
tinha ido cortar o cabelo, e enquanto o Pertence trabalhava com pente e
tesoura, o Zé Maria trazia cafezinho, água, puxava-lhe o saco descaradamente,
perguntava pela Dª Antônia, e... como era mesmo o nome da menina que ele estava
pegando na Periquita de que todo mundo andava comentando?
Zequinha não gostou nada da intimidade de Zé Maria, e só não mandou ele
para a “puta que o pariu” em respeito à barbearia, que como sabemos é um dos
lugares mais sagrados e respeitados pelos homens de cidade pequena. Templo do
saber, da política e do futebol. Onde são feitas as declarações mais
peremptórias e as confidências mais íntimas e profundas.
Quando soube da visita da mulher à vidente, Zequinha tomou o fato como
uma verdadeira traição. “Como ela podia desconfiar dele? Homem probo e
consciente dos seus deveres de pai e chefe de família. Que nunca deixara faltar
nada naquela casa”. Embora merecesse, ele só não bateu nela por princípio, mas
que deu vontade deu. Chegou a tirar o cinto, mas se conteve. Mas a gritaria foi
grande.
Antônia não se conformou. Passou na barbearia, pegou a bichinha pelos
cabelos (longos, falsamente loiros e recém escovados) e foi direto para a casa
de Maria do Porto Rico.
Entrou pisando firme, sem se anunciar e chutando a porta que se
escancarou derrubando e espatifando no chão o cafoníssimo jarro verde e amarelo
de louça que, em cima de um tamborete, sustentava o comigo-ninguém-pode de
proteção da casa.
A cachorrinha da casa, só de ver os olhos fumegantes de Antônia, correu ganindo
para o quintal, chorando feito filhote.
Maria estava em frente ao congá fazendo suas orações. Antônia agarrou
aqueles lindos, longos, negros e lisos cabelos de índia brava e de um só golpe
deixou Maria estatelada no chão. Tirou do cinto grosso e de fivela não menos
cafona que o vaso, e destruiu o congá, santo por santo, vaso por vaso, vela por
vela, flor por flor. Depois foi a vez de Maria, e deu...
- Sua macumbeira de merda, me cobra uma fortuna e depois ainda conta
para o meu marido que eu vim aqui. Toma sua desinfeliz, e deu...
E vapt, e vupt.
- E você sua bichinha louca, toma também para não ficar dando em cima do
marido dos outros, e deu também...
A coisa foi feia. Acabaram todos na delegacia. A casa semidestruída,
Maria e Zé Maria com escoriações generalizadas e Fagundes, o fotógrafo da
“Folha Isabelense” fazendo as fotos que sairiam na primeira página do dia
seguinte.
Alguns anos depois, tomando calmamente uma gelada na Periquita de Ouro,
Zequinha pergunta pro Zuca:
- Rapaz, você se lembra daquela vidente tua vizinha? Onde será que ela
anda depois que sumiu de Santa Isabel?
- Sabe não? Era Maria da Rocha. Voltou para o marido, Edenilso da Rocha.
Ouviu a Palavra, converteu-se e hoje é pastora e prega junto com o Edenilso na
igreja evangélica que fundaram, a “Rocha Viva do Senhor Jesus”.
Pois é, é por isso que:
Ogum não devia beber,
Porque a cerveja é espuma do mar ...