sexta-feira, 21 de maio de 2021

Minha Versão - Capítulo 36 - A Obra de Santa Rosa Paradero 23. As greves. A administração socialista.

 A Obra de Santa Rosa Paradero 23. As greves. A administração socialista. Mario Riquelme, George o suiço. El cacho. O refeitório. O camionazo.

 

Quem segue por Santa Rosa, na direção da via expressa Américo Vespucio, pode ver no paradero 23 à esquerda uma sequência de sobradinhos pareados e à direita um conjunto de edifícios de quatro andares. 

 

Foram todos construídos em 1972 num programa da CORVI – Corporación de la Vivienda.

 

A CORVI foi criada no governo da Unidad Popular com o objetivo de proporcionar habitação digna, de qualidade, para a população de baixa renda, especialmente os habitantes das poblaciones callampas isto é, favelas.

 

Através do Jones, conheci o pessoal da CORVI e entrei na corporação para trabalhar de fiscal de obra. Foi minha primeira experiência de obra, e me mostrou que realmente era essa minha vocação e o trabalho que me dava mais prazer.

 

O projeto era muito ousado e revolucionário, técnica e socialmente.

 

Tecnicamente, era um projeto soviético de edifícios populares que, com armações pré-montadas, formas removíveis e reaproveitáveis, mais um sistema de guindastes móveis, conseguia construir um bloco de 4 andares e 16 apartamentos de 2 e 3 quartos em 3 ou 4 meses. Isso que as lajes e paredes principais eram construídas inteiramente de concreto armado à prova dos terremotos tão comuns nessa parte do Chile.

 

Socialmente, o projeto utilizava os próprios moradores da favela como mão de obra. A idéia era que construíssem suas próprias moradias, implicando numa grande motivação para o trabalho. Pessoas que estavam na sua maioria desempregadas ou sub-empregadas, eram formados como pedreiros, carpinteiros, encanadores, enferradores, pintores, etc.. 

 

Adquiriam assim, além de sua moradia, uma profissão para o futuro. 

 

Eram todos remunerados dignamente tanto na fase de treinamento como durante a obra. Dos seus salários já era descontada uma parcela a título de prestação para pagamento do seu futuro imóvel.

 

Tudo se encaixava perfeitamente, mas ninguém contava com as particularidades políticas do Chile naquela época...

 

***

 

Cheguei na obra já no outono, com o friozinho do inverno começando a aparecer. 

 

Cheguei ressabiado, tudo era novo. A obra no meio de uma favela, o pessoal muito mal encarado, as instalações super precárias. Fui recebido pelo chefe da obra, um arquiteto socialista que me deu pouca conversa e indicou que iria trabalhar com Riquelme e George, e que eles me ensinariam o trabalho. 

 

Ok, pensei, e saí procurando pelos dois, mas George não tinha ido trabalhar nesse dia e Riquelme estava em cima de uma laje, de capacete e com uma trena na mão, pediu que eu voltasse no dia seguinte às 7 da manhã.

 

Apesar das más impressões, lembro que voltei feliz para casa, agora com a perspectiva de um trabalho concreto, de viver a realidade chilena longe da colônia brasileira e de sua eterna masturbação teórica sobre a revolução, sem engajar-se numa frente de luta, no trabalho.

 

Era longe mesmo, gastaria por dia pelo menos duas horas, ida e volta, pegando dois ônibus (micro-buses) lotados. Mas ônibus lotado nessa época em Santiago era muito mais do que nosso conceito de ônibus lotado. Viajavam até pendurados nas portas o que o motorista não podia evitar.

 

Por isso, resolvi torrar parte de minhas economias e comprar uma motinha velha. Uma Ducati 175 italiana, que devia ter no mínimo uns dez anos de idade. Passei mais de um ano indo todos os dias de moto para o trabalho, e minha maior lembrança era no inverno, quando nevava, o asfalto com uma fina camada de gelo me obrigava a dirigir a 20km por hora para não cair. O pior é que não tinha roupas apropriadas para esse frio abaixo de zero, e minhas luvas e o cachecol que enrolava no rosto, de lã tricotada, deixavam passar o vento gelado que me fazia chegar na obra com os dedos e nariz vermelhos e duros de frio. Lembro que revestimos as paredes de tábuas do barraco que era o nosso “escritório”, com placas de isopor. Conseguimos um aquecedor elétrico que não dava conta de amenizar o frio no trabalho.

 

Dia seguinte, pontualmente às 7:00 estava eu na porta da obra. Custei um pouco para que me deixassem entrar. Ainda não tinha crachá, e a segurança era estrita, feita pelos próprios operários. Temiam ataques terroristas da ala mais facista da direita que já começava a se organizar para o golpe.

 

Riquelme veio me buscar na porta, fomos para o “escritório” dos “fiscais da obra”. Os fiscais éramos nós três, e o escritório era um barraco de tábuas de pinho com teto de zinco com 3x2 metros.

 

Ali me indicou uma mesa-prancheta com uma banqueta, meu posto de trabalho. Sem problema, porque a maior parte do tempo passaríamos na obra.

 

Riquelme era magro, alto, fartos cabelos pretos e um bigodinho fino já ultrapassado na época. Usava invariavelmente um terno escuro, mesmo no frio mais intenso, quando colocava uma blusa de lã por baixo do paletó e um cachecol de tricô.

 

Até há pouco, tinha sido professor primário. Agora, recém-formado como Técnico de Construção também estava começando no ramo. Deveria estar em torno dos 40 anos, casado, três filhos, morava bem mais longe que eu, em Puente Alto se não me engano.

 

Tinha no incisivo superior, um pivô formado por uma base de ouro coberto com uma fina lâmina de porcelana. Só que já há algum tempo, a porcelana havia caído, então Riquelme recortava com todo cuidado um pedacinho de papel branco e colava no lugar da porcelana. É claro que tinha que repetir a operação restaurando o dente a cada refeição.

 

Era uma pessoa muito simpática, alto astral, feliz com a família e seus progressos profissionais recentes. Todas as manhãs esquentávamos uma água para um chá com um “rabo quente” (resistência elétrica que se coloca dentro d’água).  Era nessa hora que Riquelme nos contava com humor sua noite anterior. 

 

Costumava jogar cartas e tomar vinho de noite com amigos e depois descrevia as maravilhas que sua mulher preparava para o jantar. Entrava inclusive nos detalhes do que acontecia depois no quarto, entre os lençóis, depois do lauto jantar.

 

Sempre chegava feliz no trabalho, com frio, chuva, neve ou sol abrasador. Um dia chegou especialmente alegre pela manhã e lhe perguntamos a que se devia tanta alegria.

 

— És que me eché una mañanera hoy, weón!

 

Explicando melhor, a sua senhora havia lhe prestado um favor especial pela manhã, isto é, “una mañanera

 

Era militante do Partido Radical, que na época integrava a Unidade Popular, e que o indicou para o posto.

 

O leque político na obra era bem democrático, mas como em todo o Chile na época, todos tinham um partido, que eram mais que uma posição ideológica, também evocavam paixões como nos times de futebol.

 

A maioria era socialista, isto é, militavam ou simpatizavam com o Partido Socialista de Chile, o de Salvador Allende. Depois vinham os “nachos” ou comunistas, a “Izquierda Cristiana”, dissidência da “Democracia Cristiana” , os miristas do “Movimiento de Izquierda Revolucionária”, e o “Partido Radical” de centro. Só não se admitiam “momios”, ou múmias como chamávamos os direitistas opositores ferrenhos da “Unidad Popular”.

 

Com toda essa diversidade partidária e com a necessária democracia interna, todas as decisões da obra passavam por uma assembléia, onde os partidos disputavam espaço, faziam conchavos, acordos, etc.

 

Praticamente todo dia tinha assembleia, seja para definir a segurança da obra contra os “momios”  que cada vez se tornavam mais violentos, seja para definir a comida, os turnos de trabalho, atrasos, pagamentos, etc...

 

O refeitório era um galpão todo construído de tábuas de pinho, desde as paredes, até as mesas e bancos. A comida era quase sempre um prato de metal com feijão, lentilha, grão de bico, etc... com um ovo cozido, duas ou três pimentas “dedo de moça” no Chile conhecidas por “aji”, e uma caneca de vinho tinto.

 

O pessoal comia o feijão com colher, tomava o vinho e comia o aji à dentadas.

Lembro que numa assembleia, um dos itens de pauta era a qualidade do vinho servido.

 

Como tinha assembleia quase todo dia, é claro que não se conseguia fazer cada bloco em 4 meses como previsto no projeto russo, durava bem mais.

A sorte era que o arquiteto argentino socialista, diretor, na verdade o chefão da CORVI, tinha uma liderança especial sobre os operários, conseguindo negociar e impedir a maioria das greves que também eram frequentes.

 

George era um arquiteto suíço que teria ido para o Chile participar da revolução. Na época, muitos jovens europeus idealistas de esquerda, acompanhavam os movimentos na América Latina e vinham participar de “La Révolution”, inspirados no Chê.

 

George me convidou uma noite para jantar em sua casa, dois casais. Foi aí que comi e aprendi a fazer o melhor fondue que já comi. Um autêntico fondue suíço. Foi uma noite muito agradável, ele e a esposa muito engraçados com boas piadas em forte sotaque francês. 

 

O fondue é simples. Derrete-se um gruyére (no Chile o “mantecoso”) no réchaud com um pouco de manteiga e noz moscada ralada e vinho branco. Tempera-se com um pouco de parmezão ralado e come-se mergulhando pedaços de pão. 

 

O Gran Final: quando acabar o queijo e restar uma casquinha no fundo da panela, coloca-se um pouco mais de manteiga quebra-se três ou quatro ovos e se mistura com um pouco mais de sal e pimenta do reino, raspando o fundo. Imagina os ovos mexidos com aquela casquinha de queijo frito que fica no fundo da panela. Uma “marravilha” como dizia George.

 

George, baixinho, com longas barbas e cabelo ruivos era muito engraçado, uma mistura de Asterix com a cara redonda do Obelix, e com seu sotaque e na sua quase incapacidade de entender a cultura, os hábitos e a informalidade dos latino-americanos.

 

 Embora falasse um espanhol correto, não conseguia entender as gírias dos operários, e vinha sempre me perguntar o significado do que ouvia e não entendia. Uma vez me pegou. Perguntou o que seria “cacho” que os operários falavam sempre. “Un cacho a la derecha”, “dos cachos abajo”. Eu também não sabia, e tive que pedir à Riquelme que traduzisse. “Cacho” era simplesmente centímetro.

 

As greves eram constantes e por qualquer motivo. Contra e até a favor da administração e do governo. 

 

Era um povo altamente politizado, a ponto de operários favelados saberem detalhes sobre a ditadura brasileira e me perguntarem sobre nossa situação política.

 

Minha impressão inicial de ter sido recebido com certa frieza e desconfiança, foi se desfazendo aos poucos, até que meses depois, eu era conhecido em toda a obra como “el brasilero guerrillero” e tratado com muito carinho, curiosidade e solidariedade. Tinham conhecimento detalhado do processo político por que passava a América Latina e me perguntavam sempre pelas notícias do Brasil. 

 

Eram também extremamente combativos.

Uma das greves “a favor” do governo, foi uma que ficou na história conhecida como “la Huelga de la volcanita”,

 

O Chile passava por uma forte reação da direita apoiada pela CIA e pelos principais empresários do país. A burguesia apostava no desabastecimento, na falta de todos os tipos de produtos nos supermercados, e no comércio em geral. O governo esforçava-se para manter os preços sob controle, 

 

Já perto do golpe de Pinochet estourou uma greve dos caminhoneiros, o “camionazo“, daclasse cooptada e financiada pelos sindicatos mafiosos americanos. Tinha um objetivo claramente político de derrubar o governo da Unidad Popular.

Os caminhões eram impedidos de circular tanto pelos grevistas, como por milícias facistas do movimento “Patria y Libertad”.

 

Com essa greve, a crise de desabastecimento piorou, os supermercados com prateleiras vazias, faltava tudo, até gasolina e gás de cozinha.

 

Na obra terminou o estoque de “volcanita”, placas de gesso acartonado que como os atuais “dry wall” serviam para fazer as paredes internas dos apartamentos. A obra não podia parar.

 

Os combativos companheiros, não tiveram dúvida, decretaram uma greve de apoio ao governo, e armados com seus instrumentos de trabalho, fecharam a avenida Santa Rosa e requisitavam todo e qualquer caminhão que passasse.

 

Numa caravana de caminhões expropriados, dirigidos pelos próprios operários foram todos à buscar volcanita na fábrica “El Volcan” que ficava na localidade de “Puente Alto”.

 

Foi uma festa. Embora estivessem dispostos a um enfrentamento com os facistas, não encontraram problema. Os militantes de “Patria y Libertad” eram todos jovens da burguesia e da classe média e não teria coragem para enfrentar operários armados de pás, foices, marretas, etc, e dispostos a tudo.

 

A chegada dos caminhões de volta na obra, carregados de volcanita também expropriada, foi uma segunda festa, agora regada a vinho nacional.

 

Os trabalhadores de todo Chile, conscientes do processo político que viviam, organizaram-se, como o pessoal da minha obra, em torno de seus sindicatos com orientação de seus partidos para defesa do governo da Unidad Popular e da “via chilena hacia el socialismo”.Essa organização detonou o alarme nas classes dominantes, prestes a perder seus privilégios.

 

Mas isso foi apenas no início da organização da direita para, no ano seguinte, desferir um dos mais violentos e sangrentos golpes militares da nossa América Latina. A sequência e organização dessa reação facista aparece, não como objeto, mas como cenário nos próximos capítulos.