sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Minha Versão - Capítulo 15 - A viagem de volta para o Rio – o “Merdel”.

  

A viagem de volta para o Rio – o “Merdel”.

 

A porta da cela se abriu, apareceram alguns carcereiros e começaram a chamar um lista de nomes, o meu entre eles.

 

Disseram que seríamos transferidos, mas nenhuma informação sobre o critério da chamada.

 

Lembro que senti nitidamente duas emoções fortes, alívio de sair daquela “lata de sardinha” e pavor em pensar que seria “desaparecido” ou torturado.

 

Juntaram umas dezenas num hall na entrada do presídio. Não podíamos conversar, sob ameaça de porrada. Só depois de colocados nos camburões, caminhões fechados para transporte de presos, pudemos nos identificar. Éramos todos do Estado da Guanabara. Deduzimos: ou estão nos enviando para o Rio de Janeiro, ou não gostam de cariocas. 

 

Uma coisa era certa, não iriam nos soltar, pois não tinha sentido colocarem todos em camburões, transportarem para algum lugar e abrir as portas.

 

Depois de uma longa viagem, quando pensamos que estávamos indo  amontoados como bois em caminhões de gado até o Rio, o caminhão parou. Gritos do lado de fora ordenava que saíssemos com as mãos na cabeça. 

 

Era uma noite escura, e lembrei de filmes da segunda guerra, quando judeus eram tirados dos vagões dos trens de transporte para serem, ou fuzilados na hora, ou enviados para uma Auschwitz.

 

Estávamos numa pista de aeroporto, e um avião grande da Força Aérea, estacionado ao lados dos vários  caminhões que iam chegando, nos aguardava. Pensei logo nas contradições da minha existência. Ou estava voltando confortavelmente de avião para a Cidade Maravilhosa, ou seria, aos dezenove aninhos, jogado no Oceano Atlântico, como o famoso serviço secreto da Marinha, o CENIMAR e outras ditaduras latino-americanas costumavam fazer com seus opositores.

 

Em fila indiana fomos entrando no avião, agentes em trajes civis, armados de pistolas automáticas ou sub-metralhadoras nos amarravam as mãos com os cintos de segurança das poltronas.

 

Durante o embarque, e depois de sentados em nossos lugares, os agentes provocavam:

 

“Vocês acham que vão pra casa? Vamos jogar todo mundo no mar”.

“Quem sabe nadar, aí, fala que vai primeiro”.

“Quem levantar da cadeira leva um tiro”.

 

Andavam pelo corredor gritando e mostrando suas armas, num prazer imenso, sádico, olhos inchados, cabelos despenteados, roupas decompostas.

 

Tudo isso falavam em meio a risos, gargalhadas. Pareciam transtornados de prazer. Morríamos de medo, as meninas esqueciam a dureza da militância e choravam.

 

O ambiente começou a ficar muito tenso, choros, desesperos e alguns protestos daqueles mais corajosos.

 

Um soldado da Aeronáutica fecha a porta e o frisson aumenta mais ainda.

Abre-se a porta da cabine e sai um oficial fardado. Pede silêncio e fala:

 

“Acalmem-se por favor. Ninguém será jogado no mar, é mentira desses policiais. Esta é uma aeronave da Força Aérea Brasileira, e eu sou o comandante. Sou a autoridade máxima aqui, e ordeno aos policiais que desengatilhem, travem e guardem suas armas. Estamos num ambiente pressurizado, um tiro disparado aqui e morremos todos. Estamos indo para a Base Aérea do Galeão e aqui os senhores serão bem tratados.”

 

Não podíamos aplaudir porque tínhamos as mãos atadas, mas começamos a estalar os dedos, como num aplauso.

 

Até hoje me emociono quando relembro a fala daquele Capitão. Ele mostrou que existe gente boa, honesta e humana nas Forças Armadas, diferente dos facínoras que nos foram buscar.

 

Relaxei e aproveitei a viagem para descansar, há tempo não sentava numa poltrona confortável.

 

Decolagem e aterrisagem tranquilas, chegando no Galeão, com raiva redobrada pelo discurso do Capitão, os policiais fizeram um “corredor polonês” da escada do avião até a porta do camburão. Com grandes cassetetes distribuíam porrada em quem passava, homens, mulheres, democraticamente, sem discriminação. O Corredor Polonês  tinha uns 20 metros, e passávamos correndo evitando ao máximo as cassetadas.

 

Todos dentro do caminhão, aliviados, um certo burburinho alegre. Afinal havíamos apanhado muito pouco e iríamos sobreviver, não gastariam numa viagem tão cara para nos matar depois. 

 

Já madrugada chegamos num quartel da Cavalaria da Polícia Militar do então Estado da Guanabara. Não consigo mais localizá-lo, mas ficava perto da Lapa. Desembarcamos, fomos reunidos na entrada do Quartel, no Corpo da Guarda.

 

Uns sargentos fizeram a contagem e quando verificaram que não faltava ninguém, olharam para o tenente que estava de Oficial de Dia como que perguntando o que fazer conosco. O tenente gritou: “leva pro Merdel”.

 

O local era um picadeiro onde se treinava cavalos e cavaleiros. Quase um ginásio redondo, com o solo de barro, coberto de palha que escondia a merda dos cavalos, daí o carinhoso nome “Merdel”.

 

Fomos informados que passaríamos o resto da noite ali. Tratamos cada um de juntar uma braçada de palha para fazer uma cama, evitando as bostas dos cavalos que ali estiveram durante o dia.