sábado, 14 de novembro de 2020

Minha Versão - Capítulo 09 - O DCE livre e a inauguração da “Estátua da Liberdade”, quando eu quase morri na rua em que nasci.

O DCE livre e a inauguração da “Estátua da Liberdade”, quando eu quase morri na rua em que nasci.

 

Nasci no Boulevard 28 de setembro em Vila Isabel, Rio de Janeiro, e  dezenove anos depois, numa manifestação reprimida à bala pelo DOPS, quase morri a poucos metros de onde havia nascido. Naquele mesmo Boulevard. 


Explico:

Na ditadura, até o Decreto 477 que baniu definitivamente os diretórios e DCEs (Diretórios Centrais) ainda se podia eleger diretorias de forma democrática, mas para os Diretórios Centrais da Universidades as regras e limitações do processo eram tantas que era praticamente impossível para a esquerda eleger uma diretoria independente.

 

Assim foram criados os DCEs Livres, com diretorias eleitas pelos diretórios que não aceitavam a Ditadura e seus métodos para o Movimento Estudantil.

 

Foi criado o DCE Livre da UERJ em 1968, e eu com meus 19 anos, mesmo sem entender direito o movimento, fui eleito presidente. 

 

Acho que foi porque era um nome novo, não comprometido com nenhuma das organizações que disputavam a hegemonia do ME (Movimento Estudantil) e tinha demonstrado combatividade nas manifestações do ano anterior.

 

Em protesto contra a política estudantil da ditadura, fazíamos constantemente pequenas greves de dois ou três dias, nas faculdades da UERJ. Eram como ensaios para uma futura greve geral que deveria ocorrer ainda naquele ano em conjunto com o resto da sociedade, em especial com sindicatos de trabalhadores.

 

Para se fazer uma greve, as faculdades mais mobilizadas e de maior impacto social e repercussão na mídia eram as de medicina, enfermagem e odontologia funcionando no conjunto universitário junto ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Boulevard 28 de Setembro.

 

Com intensa mobilização nas assembleias de cada faculdade, tiramos uma greve com grande adesão dos alunos, funcionários e professores.

 

Num contexto de ebulição social surgindo por todas partes, essa greve demonstrou aos órgãos de inteligência que já tínhamos disposição, massa e organização suficiente para lutar de forma mais consequente, o que, de certa forma, acendeu um “sinal amarelo” na repressão.

 

A greve já ia pelo terceiro ou quarto dia paralisando os serviços não essenciais do hospital, e por mais agitação que fizéssemos, não saía nem uma linha nos jornais, nem uma palavra nas TVs e rádios.

 

Resolvemos então fazer uma grande manifestação de apoio às faculdades em greve, levando alunos de todas as demais, da UERJ e de outras Universidades.

 

A idéia era inaugurar a “Estátua da Liberdade” em frente à entrada do Hospital Pedro Ernesto. Construímos em pranchas de madeira e papelão, a figura de um Policial Militar com uns três metros de altura, farda, capacete e com o braço direito levantado, empunhando não a tocha da liberdade, como em Nova York, mas um cassetete de madeira de um metro de comprimento.

 

Erguemos a “estátua” apoiada numa árvore no meio do canteiro central do Boulevard, bem em frente à entrada do hospital. Logo surgiu uma pequena multidão de jalecos brancos, estudantes, médicos, funcionários. Os pedestres da movimentada avenida paravam para assistir. 

 

Como presidente do DCE, comecei a manifestação. Subi num púlpito improvisado e comecei um discurso de defesa da greve e do nosso direito de fazê-la. Sucederam-se discursos dos presidentes dos diretórios locais.

 

Depois de mais ou menos uma hora, terminados os discursos, os aplausos e os gritos de “Abaixo a Ditadura”, resolvemos sair em passeata pelo Boulevard, que já estava com o trânsito interrompido. 

 

Saímos com faixas, cartazes e palavras de ordem em direção à Praça Barão de Drumond. Eu ia na frente, de braço dado com os demais dirigentes estudantis que haviam acorrido para a manifestação.

 

Na primeira esquina, uma camionete Veraneio do DOPS foi atravessada no meio do Boulevard. Dela saíram uns poucos policiais, que pelo número reduzido, e por não serem da tropa de choque, não demos muita confiança.


Continuamos avançando aos gritos. Dispostos a enfrentá-los, afinal de contas estávamos acostumados a brigar com a policia militar e até com a cavalaria, não seriam meia dúzia de policiais civis que iriam nos amedrontar.

 

Só me assustei, quando dois policiais, acho que se sentindo encurralados, ajoelharam no chão em posição de tiro e miraram sua pistolas em nossa direção. 

 

Veio o primeiro tiro, o segundo, o terceiro, e continuávamos a acuá-los. Naquele momento eu me sentia num filme, num sonho, e me impressionava com minha falta de medo, caminhando contra tiros. Caminhando e cantando...

 

Só caí na real e me apavorei quando o colega ao meu lado, de jaleco branco, deu um gemido e caiu no chão com o jaleco ensanguentado.

 

Foi uma correria, tentamos voltar. Nessa altura a tropa de choque já ocupava a outra esquina e nós é que ficamos encurralados. A única saída era entrar no hospital, e a maioria conseguiu. Os que ficaram na rua iam sendo presos e colocados em fila indiana e levados para os camburões. 

 

No interior do hospital a batalha continuava. A polícia depois de hesitar por alguns momentos invadiu o hospital e lançava bombas de gás lacrimogênio. Doentes saiam desesperados sem poder respirar. O berçário foi atingido, salas e corredores viraram uma praça de guerra. 

 

Fui surpreendido quando me agarrou pelo braço um primo que não via há quatro anos, desde o aniversário de 80 anos de nossa avó Joanna em Corumbá MS. Eu não tinha noticias do Mario Gomes de Arruda desde então, e muito menos sabia que estudava odontologia na minha mesma universidade. 

 

Ele me agarrou pelo braço e disse “Vem comigo, corre”. No caminho disse que tinha me reconhecido desde que comecei o discurso ao lado da “Estátua da Liberdade”.  Levou-me correndo pelo terreno do hospital até os fundos, onde um alto muro o separa da Av. Professor Manoel de Abreu. 

 

Não sei como, pulei o muro e sai correndo como um maratonista. Só fui parar no Estádio do Maracanã, onde recuperei o fôlego para pegar um ônibus para a praça XV e tomar a barca para Niterói.

 

A manifestação valeu a pena. Finalmente os jornais e TVs não puderam esconder o que tinha acontecido. Sai numa foto no Jornal do Brasil ao lado da “Estátua da Liberdade”

 

Só fui voltar a ver o primo que me salvou a vida, ou pelo menos da prisão, um ano depois quando me escondia na casa de sua irmã Ney no bairro de Laranjeiras.

 

Nunca me lembrei de agradecer ao primo querido e valente que correu sério risco por ser primo de um “perigoso subversivo”. 

 

Mas nunca é tarde, aqui vai meu MUITO OBRIGADO primo MÁRIO GOMES DE ARRUDA. Espero que esse agradecimento chegue até você.




 

 

 

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