sexta-feira, 16 de julho de 2021

Minha Versão - Capítulo 44 - A viagem de volta, chegada no Galeão, a torcida do Flamengo e o reencontro com a liberdade

 A viagem de volta, chegada ao Galeão, a torcida do Flamengo, o reencontro com a liberdade. Um Chopp em Icaraí.


O voo era Santiago – Buenos Aires – Rio de Janeiro.

Não sei quanto tempo levou, mas para minha angústia foi uma eternidade.

 

Imaginava as várias formas possíveis de ser levado preso. Seria torturado? Temia o que fariam com a Marisol se soubessem que estava comigo, por isso resolvemos desembarcar separados.

 

Ao decolar da escala em Buenos Aires, estava tão nervoso que tomei o Librium que tinha me dado a vizinha socialista. 

 

Da casa de Pepin, finalmente consegui conversar por telefone com meus pais.

 

Avisei dia e hora da minha chegada, dos medos que tinha e das hipóteses de prisão.

 

Para tentar evitar, meu pai convocou vários amigos para me receberem no aeroporto, pelo menos para testemunharem que me viram vivo, que eu havia chegado, e assim não poderia ser “desaparecido” como costumava acontecer com os que voltavam do exílio. 

 

Entre eles o Danilo Mansur, grande amigo e advogado. Acho que foi dele a idéia de pedir ajuda ao conhecido advogado Augusto Sussekind, conhecido pela sua defesa de presos políticos, tendo conseguido com muita luta em quartéis, tribunais e delegacias, encontrar presos, evitar torturas e “desaparecimentos”.

 

Além dos amigos, advogados e familiares estava o inesquecível tio Juca, José de Oliveira, muito querido pela sua simpatia e educação em Vila Isabel, onde morava e eu havia nascido, na Bolsa de Valores onde trabalhava e principalmente na torcida do Flamengo. 

 

Era tão fanático e querido pelos torcedores, que embora frequentasse o Maracanã todos os domingos, nos dias que jogava o Flamengo deixava a cadeira “perpétua” que meu avô Adamastor de Oliveira lhe havia deixado de herança, para torcer na arquibancada, no meio da galera. 

 

Era da bolsa de valores como seu cliente e das cadeiras do Maracanã que tio Juca conhecia o coronel Macedo.

 

Graças à essa amizade, o tio Juca foi me buscar na pista do aeroporto (ainda não existiam os fingers) para me acompanhar durante a burocracia da chegada, enquanto toda a família aguardava do lado de fora, olhando pelo vidro da sala de desembarque, onde na época também era a restituição das bagagens.

 

Desembarcando, eu ainda relaxadão do Librium, segui com tio Juca que me perguntava:

 

— Conseguiu passaporte?

 

Disse que não e ele deu um sorriso amarelo para esconder a contrariedade. 

 

Havia duas filas na Polícia Federal, uma para brasileiros e outra para estrangeiros.

 

Marisol entrou na sua fila, com seus longos cabelos loiros, seu poncho e seu violão, enquanto eu, de terno, gravata e bigodinho aguardava, com o tio Juca, minha vez de mostrar os documentos no guichê da Polícia. Documentos que se reduziam à minha identidade e ao cartão de desembarque que se preenche no avião de voos internacionais antes de aterrisar.

 

A fila andando, e eu, Marisol, tio Juca e a família do outro lado do vidro cada vez mais nervosos. 

 

Não sei se era mesmo o procedimento padrão ou foram nossas caras tensas que nos denunciaram. Ao chegar na minha vez, o burocrata me pediu o passaporte:

 

— Passaporte.

— Não tenho, fui para o Chile por terra só com a identidade, mas agora com o que aconteceu lá, tive que voltar de avião.

— Profissão

— Estudante

 

Nesse ponto, o burocrata, de dentro de sua guarita de plástico começou a gritar:

 

— O quê? Estudante, vindo direto do Chile? Aí tem coisa, eu não autorizo o desembarque.

 

Mais uma vez, falei para mim mesmo: FUDEU!

 

Nisso, ouvindo os gritos, abre-se uma porta e sai da sala ao lado um senhor de terno preto com cara de militar. Sério, cara amarrada, caminhar firme. Vem direto para o nosso lado.

 

O burocrata parece que ficou mais apavorado, e gritava mais alto ainda:

 

— Não desembarco, é subversivo, não desembarco mesmo!

 

Parece que estava querendo chamar a atenção do senhor de terno preto, mostrar serviço, ou com medo de ser acusado de deixar entrar um estudante subversivo. Quem sabe?

 

O senhor de terno preto aproximou-se mais. Minhas pernas tremeram. Chegou perto e perguntou educadamente:

 

— O que está acontecendo aqui agente?

 

— Coronel, esse estudante está chegando do Chile, sem passaporte, sem outros documentos, é tudo muito suspeito.

 

A fila crescia com as pessoas que chegavam do avião, todos olhavam, a tensão subia.

 

Até que o homem de terno preto nos olhou e gritou:

 

— Juca, mermão! O que você tá fazendo aqui? 

 

E meu tio Juca, com seu lindo e cativante sorriso de sempre respondeu:

 

— Coronel Macedo! Que bom te ver rapaz. Há quanto tempo, não tem mais ido nos jogos do Flamengo, a turma está sentindo a sua falta!

 

—Pois é Juca, depois que assumi o comando do aeroporto, não tenho tido tempo para nada.

 

E tio Juca:

 

— Macedo, é que vim buscar meu sobrinho na pista, e esse cara aí tá querendo criar problema.

 

Coronel Macedo voltando-se para o agente do guichê.

 

— Desembarca o garoto aí Armandinho, porra!

 

— Ma…ma…mas onde eu carimbo coronel?

 

— Em qualquer lugar Armandinho, não enche o saco porra.

 

Armandinho nervoso, carimbou meu desembarque no formulário que eu havia preenchido no avião.

 

O Coronel Macedo com o braço nos ombros do meu tio Juca foi nos conduzindo para a porta de desembarque. Pela sua cara, seu sorriso matreiro, entendi que ele entendera tudo, mas não ia brigar com um amigo de torcida e seu corretor na bolsa de valores.

 

Enquanto eu abraçava cada um dos parentes e amigos, com os olhos cheios de lágrimas de alegria e de alívio, mas sem querer chamar muito a atenção, tio Juca à parte marcava um chopp com o coronel Macedo para o próximo domingo. Que ambos sabiam que nunca aconteceria. Coisas de carioca.

 

Foi assim, embora torcendo pelo Botafogo, que graças à torcida do Flamengo e a um coronel da Aeronáutica, desembarquei no aeroporto do Galeão em outubro de 1973 sem ser preso.

 

                                                               *** 

 

Demoraram algumas semanas para cair a ficha. Durante algum tempo ainda temia que a polícia se daria conta do erro e viria me buscar em casa.

 

Dormia com sobressaltos ouvindo carros e viaturas na rua. No fim de semana, jantando pela primeira vez num restaurante perto de casa, fiquei apavorado com os fogos de artifício lançados por torcedores depois do jogo. Pensei que fossem tiros, e pensei em fugir, me esconder.

 

Mas eu não tinha motivo para me preocupar. Meu pai, depois da ligação que fiz do Chile, conseguiu com o Sussekind os documentos de prescrição  do processo de Ibiúna. Eu estava livre para voltar à faculdade e trabalhar.

 

Aos poucos fui relaxando. Embora ainda estivéssemos sob a ditadura militar, já se falava em abertura, e eu, em comparação com a experiência vivida no Chile, tinha um sentimento de alegria e liberdade.

 

Até voltar à faculdade, em março de 1974, resolvi compensar o enorme estresse do golpe e da ditadura chilena.

 

Para curar esse trauma, nada melhor que as praias oceânicas de Niterói, como Itacoatiara, Itaipu, Piratininga, com muito sol, calor, e degustar um chopp gelado, bem tirado, em Icaraí, deslumbrado com a vista do Rio de Janeiro, do Pão de Açúcar, Enseada de Botafogo, Praias do Flamengo e a Baía de Guanabara. 

 

Minha querida Praia de Icaraí, minha principal referência de infância que, em alguns momentos, cheguei a achar que nunca mais veria…






 

 

 

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