sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Minha Versão - Capítulo 22 - O encontro com Jones

O encontro com Jones 

No mesmo dia visitei a CORVI – Corporación de la Vivienda, órgão do governo voltado para a construção de casas para a população de baixa renda. Onde mais tarde iria trabalhar como fiscal de obra.

 Jones não estava. Em seu lugar me recebeu uma outra brasileira que me fez mais um monte de perguntas, disse que o Jones estava de licença no trabalho mas que faria contato com a mulher dele. Estranhei, mas não se faziam perguntas. Fiquei de voltar à CORVI no dia seguinte, mas deixei o número do telefone da casa do Jonnas.

 Aproveitei o resto do dia para caminhar pela cidade, Cerro Santa Luzia, Providencia, Plaza Itália, etc. Estava maravilhado com a beleza, arborização, limpeza e organização da cidade. Acho que foi aí que nasceu a vontade de morar em Santiago para o resto do exílio e, quem sabe, até depois.

 De manhã a companheira do Jones me liga, diz que falou com ele sobre mim, que me daria todo apoio que precisasse, que ela trabalha todo o dia, mas que poderia visitá-la à noite em casa. 

 Eles moravam numa “población”, isto é, um conjunto habitacional com toda infraestrutura chamado Las Torres de Macul. Uma vila novinha, com centenas de lindas casinhas muito bem construídas pelo governo, de dois ou três quartos, muito agradáveis. No bairro de Macul, perto da famosa Viña Macul. Era quase um bairro, com um bom arruamento, cortado por uma avenida onde ficavam as torres de uma linha de transmissão, daí o nome.

 Chegando na casa ela me recebeu muito amistosa e solidária. Pena que, por mais que me esforce, não consigo lembrar o seu nome. Embora fosse loira, tinha um nome tupi e era de Brasília.

 Me convidou para entrar e jantar. Estranhei que ela estava só. Colocou a mesa, sentamos, e enquanto comíamos, explicou a situação.

 O Jones tinha “desbundado”. Esse era um termo para classificar um fenômeno relativamente comum entre os jovens exilados, a depressão.

 Muitos brasileiros exilados encaravam uma depressão bem forte, pela sensação de derrota, de terem sido arrancados de sua terra, sua família, pela melancolia da saudade, palavra tão significante da língua portuguesa, que vem desde os navegadores portugueses até os africanos desterrados para o Brasil e que define um sentimento tão constante em nossa cultura.

 O choque com uma cultura tão diferente, afetava a todos, a falta da alegria natural do brasileiro, das comidas, do calor, enfim, do samba/futebol/cerveja, do falar alto, dos abraços e beijos espontâneos que trocamos sem cerimônia e ao mesmo tempo tão difícil para os chilenos, tão britânicos, que chamavam a si próprios “os ingleses da américa latina”.

 Esse “banzo”, tristeza comum entre os africanos escravizados, dominava a colônia brasileira em Santiago. Essa colônia chegava a se constituir num verdadeiro gueto, onde só se falava português, só se discutia política brasileira, reproduziam nossas festas, chegavam a importar feijão, rapadura, farinha de mandioca, etc... Só se reuniam e namoravam entre si.

 Desde o início me rebelei contra isso e procurei inserir-me na sociedade santiaguina, só falando “chileno”, um espanhol com sotaque bem particular, e fugindo dos eventos sociais do “gueto”.

 No meio do jantar ela entrou em detalhes sobre o Jones.

Ele tinha caído em depressão profunda e teve que ser internado numa clínica. Imagina o susto! Meu chão sumiu. O Jones era minha esperança em Santiago, pois não conhecia mais ninguém.

 Ela percebeu meu susto, minha insegurança, apavoramento, e tentou me acalmar. Explicou que no dia seguinte era o dia da semana que ele saia da clínica para vê-la e dar uma volta, que ele já vinha melhorando, inclusive já voltara a conversar e conseguia estabelecer um diálogo mais prolongado, o que era muito difícil quando começou a crise um mês antes.

 Ela trabalhava com o famoso crítico de arte Mário Pedrosa, uma das maiores cabeças brasileiras do século XX. Marxista, fundador do PCB e depois um dos primeiros contestadores do Stalinismo, difundindo o pensamento e a prática de Trotsky na esquerda brasileira. Morava numa bela casa em estilo inglês, perto do Mapocho onde a mulher de Jones trabalhava. Era sua secretária e datilografava seus livros.

 Combinamos de nos encontrar no dia seguinte com Jones na casa de Mario Pedrosa. Ela achava que seria bom ele me rever, que talvez o alegrasse.

 Foi uma frustração quando nos encontramos no dia seguinte.

Eu com uma grande expectativa, tinha tanta coisa para conversar, ansiava por um abraço do amigo e pela sua fala rápida, escorreita, precisa, do belo  sotaque pernambucano.

 Encontrei um Jones com uma barba enorme, preta, parecendo um aiatolá.

Apertou minha mão sem entusiasmo, como se tivéssemos nos visto no dia anterior, perguntou como eu estava e a partir dai calou-se.

Saímos caminhando pela margem do rio e fiquei do lado esquerdo, entre ele e o precipício, lembrando das instruções de sua mulher, que cuidasse com qualquer tentativa de suicídio.

 Foi muito triste, falei sem parar, pelos dois. Contei toda a fuga, a situação no Brasil, meu casamento e a faculdade pós 68, etc. Ele permanecia calado, com olhar e pensamento distantes.

 No fim da caminhada, já chegando de volta na casa de Mário Pedrosa, ele finalmente falou.

 — Vou ficar mais um tempo na clínica, mas você vai lá pra casa até se enturmar e encontrar um lugar para morar. Assim é bom que faz companhia para a ... (não consigo lembrar o nome dela) até eu voltar. Ela está precisando, anda muito triste e sozinha por minha causa.

 Ficou combinado de eu me mudar no fim de semana, quando ela poderia ajudar a instalar-me.



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